domingo, 8 de maio de 2016

Teologia Sistemática 1 - aula 03 - Doutrina das Escrituras


TÓPICOS DA AULA
1. A necessidade das Escrituras
2. A inspiração das Escrituras
3. A autoridade das Escrituras
4. A suficiência das Escrituras
5. A clareza das Escrituras
5.1. A interpretação das Escrituras
6. A formação do cânon
6.1. A formação do Antigo Testamento
6.2. A formação do Novo Testamento
7. Livros apócrifos
8. Bibliografia


1. A NECESSIDADE DAS ESCRITURAS
A necessidade da existência das Escrituras Sagradas decorre do pecado do homem. Antes da queda, o homem tinha plena condição de ouvir a vontade de Deus por meio de Sua Palavra falada e obedecê-la perfeitamente. Entretanto, o pecado quebrou o relacionamento existente entre Deus e o homem, pois a criatura imperfeita e manchada pelo erro não poderia mais se aproximar do Criador puro e santo.

“(...) A Revelação Geral, que fora adequada para as necessidades do homem no Éden – embora saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17, 19, 22; 3.8ss) – tornou-se, agora, incompleta e ineficiente para conduzir o homem a um relacionamento pessoal e consciente com Deus. (...)”[1]

Ao longo da história, vários grupos tentaram negar a necessidade das Escrituras. O catolicismo romano defende que a igreja é a detentora da verdade, fidelidade e pureza e as preserva através do ofício papal. Para eles, as Escrituras decorrem da igreja, são importantes para orientar os cristãos, mas não são necessárias para a existência da igreja. A igreja não precisa das Escrituras, mas as Escrituras precisam da igreja. Outro argumento utilizado pelos papistas (defensores do papado) é que a igreja como povo escolhido de Deus já existia antes de Moisés, portanto, sem as Escrituras, e que muitos cristãos vivem sem possuir ou ler as Escrituras, e ainda assim fazem parte da igreja. Em resumo, para o catolicismo romano, a necessidade das Escrituras é negada em razão da supervalorização da igreja e da tradição.

O misticismo nega que a Bíblia contém a verdade e a considera apenas um meio pelo qual uma elite alcançará o nível espiritual superior. As Escrituras contêm fatos históricos, mas a verdadeira palavra de Deus é aquela falada ao coração das pessoas pelo Espírito Santo. Não há uma verdade absoluta nas Escrituras, mas o Espírito orienta e instrui individualmente cada pessoa da forma que lhe agrada.

O racionalismo ampliou essa ideia e supervalorizou o ensino individual do Espírito à razão humana. As Escrituras contêm apenas a letra fria da lei, que mata, segundo ela mesma diz (utilizando-se de interpretação equivocada de 2 Co 3.6b). Os escritos da Bíblia devem ser interpretados à luz da verdade interna de cada pessoa.

Contra todos esses argumentos, a doutrina reformada defende a absoluta necessidade das Escrituras. É verdade que a igreja, como ajuntamento do povo de Deus, é mais antiga que a palavra divina escrita, mas também é verdade que a igreja é mais recente que a palavra falada de Deus. Desde sua criação, o homem sempre foi orientado pela palavra falada de Deus, e assim também o foi durante todo o Antigo Testamento. Os cristãos do Novo Testamento, por sua vez, possuíam toda a palavra escrita do Antigo Testamento como regra divina para sua orientação. Os apóstolos foram autores de vários livros e cartas durante sua vida, em um momento no qual a tradição e as Escrituras estavam unidas. Após a morte dos apóstolos, a igreja reconheceu a importância desses escritos como palavra revelada de Deus, e assim foi formado o cânon oficialmente reconhecido a partir do Século II. Esse desenvolvimento demonstra que a necessidade das Escrituras foi sempre crescente ao longo da história do povo de Deus.

“(...) A Escritura veio à existência e foi completada passo a passo. Na medida em que essa revelação progredia, a Escritura aumentava sua extensão. Fosse qual fosse a parte da Escritura que existia em um determinado período, ela era suficiente para esse período. Semelhantemente, a revelação que tinha ocorrido até esse momento era suficiente para esse momento. A Escritura, assim como a Revelação, é um todo orgânico que veio gradualmente à existência. A planta madura já estava presente na semente, o fruto estava presente no germe. A revelação e a Escritura mantiveram o passo com o estado da igreja, e vice-versa. (...)”[2]


As Escrituras são extremamente necessárias para a preservação da Palavra, sua defesa e propagação. Elas também são a única forma de orientar constantemente o homem naquilo que ele deve fazer e evitar.

“(...) Era necessário que a Palavra escrita fosse dada à igreja, para que o cânon da verdadeira fé religiosa fosse constante e imutável; para que fosse facilmente preservada pura e íntegra contra a fragilidade da memória, a depravação humana e a brevidade da vida; para que fosse mais solidamente defendida das fraudes e corrupções de Satanás; para que mais convincentemente não só fosse enviada aos ausentes e amplamente separados, mas que também fosse transmitida à posteridade. (...)”[3]

Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. Sl 1.2


2. A INSPIRAÇÃO DAS ESCRITURAS
A doutrina reformada defende que as Escrituras foram inspiradas por Deus. Antes de entendermos o que isso significa, vejamos o que isso não significa:

Inspiração não significa que os autores bíblicos foram apenas “digitadores” utilizados por Deus para registrar sua Palavra. Cada autor escreveu conforme sua capacidade intelectual e influência social a que estava sujeito. A grande diferença de estilos existentes nos livros da Bíblia comprova isso. O próprio apóstolo Pedro reputou como “difíceis de entender” algumas coisas que Paulo escreveu (2 Pe 3.15-16).

Inspiração não se confunde com iluminação. Iluminação significa a ação do Espírito para dar a uma pessoa ou grupo maior compreensão espiritual, como, por exemplo, no estudo da Bíblia ou na transmissão da Palavra de Deus por meio da pregação. Os autores bíblicos não foram simplesmente “iluminados”, caso contrário o registro bíblico dependeria de sua capacidade de apreensão e poderia conter erros de interpretação, o que contraria a infalibilidade da Bíblia.

Inspiração não significa intuição, como ocorre com grandes músicos, inventores, artistas etc. a intuição é uma capacidade humana dada por Deus em maior ou menor grau a cada pessoa em cada uma das áreas do intelecto e dos sentimentos. Se a Bíblia tivesse sido escrita com fundamento na intuição, conteria erros e não transformaria os corações e mentes dos leitores.

Ultrapassadas as interpretações equivocadas, vejamos o que significa a inspiração dos autores bíblicos:

“(...) Podemos definir a inspiração como sendo a influência sobrenatural do Espírito de Deus sobre os homens separados por ele mesmo, a fim de registrarem de modo inerrante e suficiente  toda a vontade de Deus, constituindo esse registro na única fonte de todo o conhecimento cristão. (...)”[4]


O Rev. Herminstein Maia Pereira da Costa, em seu livro “A inspiração e inerrância das Escrituras”, elenca quatro características sobre a inspiração das Escrituras:[5]

- Plenária: toda a Bíblia é divinamente inspirada.

Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, 2 Tm 3.16

- Dinâmica: Deus preservou a personalidade dos autores bíblicos. Deus separou seus servos desde o nascimento para essa função especial.

sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens (santos) falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo. 2 Pe 1.20-21

- Verbal: Deus se revelou por meio de palavras e todas as palavras contidas na Bíblia são palavras divinas.

O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua. 2 Sm 23.2

- Sobrenatural: as Escrituras são o meio utilizado por Deus para a propagação da Sua Palavra e para a transformação da mente e do coração dos seus filhos.

E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo. Rm 10.17


3. A AUTORIDADE DAS ESCRITURAS
O catolicismo romano afirma que a igreja é a responsável por manter e transmitir de forma infalível a revelação divina. Para eles, cabe à Igreja estabelecer e confirmar a autoridade das Escrituras. A autoridade está na Igreja e não nas Escrituras.

Para os teólogos reformados, a autoridade das Escrituras provém do fato de ser ela a Palavra revelada escrita de Deus. A própria Bíblia atesta sua autoridade. Como vimos no primeiro tópico, ao longo da história o povo de Deus sempre foi orientado por sua palavra, e Deus resolveu revelar sua Palavra escrita de forma progressiva para orientação dos seus filhos. Cabe à igreja buscar a orientação de Deus deixada de forma escrita nas Escrituras. Sendo assim, ao contrário do que defendem os católicos romanos, a Bíblia detém proeminência em relação à igreja, pois é nela que os cristãos encontram alimento para o desenvolvimento da igreja.

Outro grupo de estudiosos tentou defender que a Bíblia contém apenas autoridade moral, o que pode ser resumido na seguinte premissa: “uma coisa não é verdadeira porque está na Bíblia, mas está na Bíblia porque é verdadeira.” As Escrituras seriam, tão somente, o ajuntamento de bons princípios aptos a orientarem a vida das pessoas.

Duas objeções devem ser levantadas contra essa ideia: 1- se a Bíblia contém apenas autoridade moral, ela não tem superioridade sobre qualquer outro livro que trate dos mesmos assuntos, como moral, boas práticas, virtude etc. As Escrituras seriam apenas mais um livro que poderia ser utilizado, ou não, por pessoas que se interessam em uma vida virtuosa; sendo assim, a Bíblia não seria a Palavra revelada de Deus; 2- se a Bíblia não é a verdade, mas apenas contém a verdade, onde encontrar a definição do que é verdadeiro ou não? Se não crermos que as Escrituras são a verdade revelada de forma escrita por Deus, não teremos segurança para seguir no caminho que O agrada. Em verdade, sequer saberemos qual é esse caminho, pois o que é certo para uns pode não ser para outros. A religião ficaria sem referencial, sem fundamento para sustentar seus ensinamentos.

Os teólogos reformados defendem que a Bíblia contém autoridade absoluta sobre todas as áreas da vida, pois ela é a Palavra escrita de Deus, que é o Supremo Criador. Nenhuma argumentação humana, por mais hábil que pareça, consegue diminuir a autoridade das Escrituras, por uma lógica muito simples: Deus é o Soberano Senhor, Todo-Poderoso Criador, detentor de autoridade absoluta sobre tudo e sobre todos. Ele, por sua eterna e perfeita sabedoria, decidiu deixar sua vontade revelada de forma escrita aos homens, e o fez por meio das Escrituras Sagradas. Logo, as Escrituras contém autoridade absoluta advinda do próprio Deus.

“(...) Todas as outras autoridades (humanas) são restritas ao seu próprio círculo e se aplicam somente à sua própria área. Mas a autoridade da Escritura se estende sobre todas as pessoas e sobre toda a humanidade. Ela está acima do intelecto e da vontade, do coração e da consciência, e não pode ser comparada com outra autoridade. Sua autoridade, sendo divina, é absoluta. Ela é designada para ser crida e obedecida por todas as pessoas em todas as épocas. (...)”[6]


4. A SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS
A Igreja Católica Romana crê que as Escrituras não são a única regra que deve orientar os cristãos, mas que a tradição da igreja é igualmente importante. Eles defendem que a tradição oral foi a responsável pela manutenção da igreja antes de Moisés e da lei e, mesmo após esse período, pois muitos cristãos vivem sem nunca ter lido as Escrituras. Outro argumento são textos como os transcritos abaixo (claramente interpretados fora do contexto):

De fato, eu vos louvo porque, em tudo, vos lembrais de mim e retendes as tradições assim como vo-las entreguei. 1 Co 11.2

Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa. 2 Ts 2.15

Por fim, os católicos romanos afirmar que a Bíblia fala pouco ou nada sobre assuntos essenciais para a igreja, como o batismo de mulheres, o Dia do Senhor, o purgatório etc., e, portanto, a tradição é essencial para preencher essas “lacunas”.

Contra essa ideia, os reformadores afirmaram que a Bíblia é perfeita e totalmente suficiente como revelação escrita da vontade de Deus, e única regra de fé e prática a ser seguida pelos cristãos. A tradição da igreja deve ser valorizada, entretanto, ela de nenhuma forma se compara com as Escrituras, pelo motivo básico de que a tradição não é perfeita, pois provêm de atos reiterados por cristãos ao longo dos séculos, que, embora redimidos pela graça divina, permanecem pecadores e por vezes agem de forma pecaminosa. Logo, não há como atribuir a perfeição das Sagradas Escrituras à tradição da igreja.

Além disso, a tradição teve grande valor no período apostólico, quando as práticas dos apóstolos e de seus discípulos correspondiam aos seus ensinamentos e podiam ser facilmente julgados por eles como corretos ou equivocados. Contudo, com o passar dos anos e com o distanciamento de tal período histórico, tornou-se cada vez mais difícil definir se uma prática (tradição) tinha origem apostólica ou havia sido criada posteriormente. Esse é mais um motivo que torna a tradição inferior e subordinada às Escrituras.

A suficiência das Escrituras não significa que tudo aquilo que foi dito ou escrito pelos apóstolos está contido na Bíblia. É certo que muitos escritos foram perdidos e que Jesus e os apóstolos falaram e fizeram muito mais do que consta na Bíblia. Também não significa que a Bíblia contêm todas as práticas e cerimônias que a igreja precisa para sua organização.

Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Jo 20.30

A suficiência significa que as Escrituras contêm toda a matéria de fé necessária para crer em Cristo e viver em conformidade com o que Ele requer dos seus filhos.

“(...) Para nossa salvação, a Escritura é suficiente. Não precisamos de nenhum outro documento, mesmo que ele venha do próprio Jesus. Esse foi o ensino da Reforma. Quantitativamente, a revelação era muito mais rica e abrangente do que aquilo que a Escritura preservou para nós, mas, qualitativamente e em termos de substância, a Sagrada Escritura é perfeitamente suficiente para nossa salvação. (...)”[7]


5. A CLAREZA DAS ESCRITURAS
O catolicismo romano defende que as Escrituras não são claras, mas sim obscuras e carecem de interpretação. Essa interpretação é dada pelo Espírito Santo à igreja, representada em última instância pelo papa. Os cristãos leigos não devem ler as Escrituras, mas somente as autoridades religiosas. Pela tradição, a igreja detém e dita a verdade aos cristãos. Ninguém está autorizado a interpretar qualquer texto bíblico de forma diferente da igreja.

Já os teólogos reformados defendem que as Escrituras são perfeitamente claras em toda a matéria de fé. Isso não significa que todas as partes da Bíblia podem ser facilmente entendidas, ou que não há necessidade de estudo aprofundado, mas sim a Bíblia pode ser compreendida em tudo que é necessário à salvação. A Bíblia é clara em tudo que os homens precisam saber sobre sua necessidade de redenção e salvação.

Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos. Sl 119.105.

Até mesmo os ímpios podem obter um conhecimento teórico através do estudo da Bíblia, porém, o entendimento que conduz o homem à salvação somente pode ser obtido pela intervenção do Espírito Santo na vida dos homens.

“(...) O conhecimento das Escrituras pode ser literal e teórico (pelo qual as palavras são assimiladas no que se refere à letra e gramaticalmente) ou espiritual e prático (pelo qual elas são apreendidas pela fé como genuínas). Há muitas coisas nas Escrituras teoricamente claras até mesmo a uma pessoa natural. Os perversos podem disputar mais engenhosamente sobre os artigos principais da fé, mas o conhecimento prático é peculiar aos crentes (1Co 2.14,15; 2Co 4.3) (...)”[8]

É certo que existem textos mais fáceis de serem compreendidos do que outros, mas a existência de textos de difícil compreensão não afasta o atributo da clareza das Escrituras. Os textos mais obscuros: 1- podem ser compreendidos através do estudo dedicado e aprofundado da Bíblia e por meio de outros textos mais claros; ou 2- não podem ser racionalmente compreendidos, mas ainda sim podem ser cridos como necessários e úteis à salvação e santificação dos cristãos. Exemplo: a doutrina da Trindade é facilmente crida por todos os cristãos, mas é difícil de ser explicada racionalmente. A clareza das Escrituras não se relaciona com a facilidade de compreensão racional de todos os textos, mas sim de tudo aquilo que é necessário para a salvação do homem.

Ao contrário do sustentado pela igreja católica romana, os pais da igreja sempre defenderam a clareza e leitura das Escrituras por todas as pessoas. A defesa da leitura universal da Bíblia foi retomada pelos reformadores, que se esforçaram para traduzir a Bíblia para a maior quantidade possível de línguas. As sociedades bíblicas ao longo do mundo também se empenharam em publicar versões das Escrituras e distribuí-las às pessoas.

É evidente que defender a clareza e o estudo universal da Bíblia traz dificuldades, como, por exemplo, a grande variedade de interpretações equivocadas e dissimuladas. As igrejas reformadas se esforçam para compreender e interpretar corretamente as Escrituras, a fim de auxiliar os cristãos em suas dúvidas quanto aos textos e passagens menos claros. Ainda assim, certamente é preferível lutar contra interpretações equivocadas que submeter-se cega e forçadamente a uma interpretação institucional, como defendido pela igreja católica. Não há meio de se defender a liberdade religiosa e negar aos cristãos a possibilidade de leitura bíblica. Não há como defender a liberdade de pensamento e escravizar as mentes dos cristãos.

A igreja tem o dever de interpretar corretamente a Bíblia e defendê-la do mau uso. Porém, a igreja não está isenta do erro, ela não é infalível. A verdadeira igreja cristã deve estar sempre disposta a estudar mais profundamente as Escrituras para reafirmar suas doutrinas ou modificá-las, caso compreenda que elas foram fruto de interpretação equivocada do texto bíblico. Isso certamente servirá de modelo e motivação aos cristãos para prosseguirem no estudo regular da Palavra de Deus.

5.1. A INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS
Por defenderem que a Bíblia é obscura e carece da interpretação do Espírito Santo por meio da igreja, os católicos romanos afirmam que as Escrituras não são o juiz supremo das controvérsias, mas sim a igreja por meio do papa. Eles admitem que a Bíblia é uma regra a ser seguida pelos cristãos, entretanto, por não ser clara, precisa ser interpretada pela igreja. Por conseguinte, a falta de clareza das Escrituras é causa do surgimento de muitas dúvidas entre os crentes, sendo necessária a existência de um juiz para declarar o certo e o errado. Como dito acima, esse juiz é a própria igreja e é exercido dentro da hierarquia humanamente constituída: igreja, concílios, pais e o papa. Dentre todos esses, somente o papa tem autoridade suprema e infalível, por ser o real representante divino na Terra.

Os reformadores negam a autoridade da igreja para interpretar e julgar as controvérsias, pois Deus afirma que Sua Palavra escrita é o padrão e o juiz de toda controvérsia, sendo que Cristo e os apóstolos confirmaram isso na prática, pois sempre apelaram para as Escrituras na resolução de conflitos.

E farás segundo o mandado da palavra que te anunciarem do lugar que o SENHOR escolher; e terás cuidado de fazer consoante tudo o que te ensinarem. Dt 17.10

Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Jo 5.39

Respondeu-lhes Jesus: Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus. Mt 22.29

Ora, estes de Bereia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. At 17.11

“(...) Quando dizemos que as Escrituras são o juiz de controvérsias, não estamos dizendo nada mais senão que elas são a fonte do direito divino e a mais absoluta regra de fé pela qual todas as controvérsias, os fundamentos das decisões e dos julgamentos são extraídos da lei. (...)”[9]


6. A FORMAÇÃO DO CÂNON
6.1. A FORMAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO
O Antigo Testamento é dividido em três partes: lei, profetas e escritos.

Não se sabe quando os primeiros cinco livros da Bíblia foram reunidos em uma coleção que é tida pelos judeus como a lei divina. É certo que, após o exílio babilônico, os judeus se reuniram em Jerusalém e pediram a Esdras que lesse o Livro da Lei de Moisés.

Em chegando o sétimo mês, e estando os filhos de Israel nas suas cidades, o povo se ajuntou como um só homem, na praça, diante da Porta das Águas; e disseram a Esdras, o escriba, que trouxesse o Livro da Lei de Moisés, que o SENHOR tinha prescrito a Israel. Ne 8.1

Certamente Israel possuía profetas em número muito maior do que os registrados nas Escrituras. Historiadores acreditam que o processo de seleção dos profetas começou após o exílio babilônico, e que os judeus possam ter se orientado por uma passagem do livro de Deuteronômio:

Sabe que, quando esse profeta falar em nome do SENHOR, e a palavra dele se não cumprir, nem suceder, como profetizou, esta é a palavra que o SENHOR não disse; com soberba, a falou o tal profeta; não tenhas temor dele. Dt 18.22


O terceiro grupo compreende os chamados escritos, mas isso não significa que eles tenham sido escritos por último. Na verdade, alguns dos Salmos e Provérbios e o livro de Jó se assemelham a histórias do Antigo Egito, muito antes da conquista da Terra Prometida pelos judeus. Não há consenso sobre como tais livros foram selecionados para integrar o cânon do Antigo Testamento.

6.2. A FORMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO
Os historiadores narram diversas versões para a formação dos livros que compõem o Novo Testamento. A versão mais aceita diz que as igrejas e congregações que foram se formando após o período apostólico (Séculos I e II) começaram a utilizar escritos cristãos em seus cultos, com leituras e explicação de pequenas partes dos textos, bem como a elaborar pequenas confissões de fé para esclarecerem aos seus fiéis no que eles deveriam crer e afastar as heresias. No terceiro século, o teólogo Orígenes fez uma pesquisa e descobriu que a maioria das igrejas reconhecia os mesmos livros como inspirados por Deus. A reunião desses livros deu origem ao Novo Testamento.

“(...) No início do terceiro século, o teólogo Orígenes realizou uma pesquisa. Essa pesquisa viria a ser um passo importante para a formação do cânon do Novo Testamento. Orígenes queria saber que escritos cristãos as igrejas estavam usando. As suas descobertas o levaram a fazer um lista com três grupos de livros: livros aceitos, livros questionados e livros não-confiáveis.
No primeiro grupo, dos escritos cristãos amplamente aceitos, estavam os quatro Evangelhos que temos hoje, as 13 cartas de Paulo que temos hoje, Atos, 1Pedro, 1João e Apocalipse. O segundo grupo, dos livros questionados, era constituído pelos outros seis livros que completam o nosso Novo Testamento: Hebreus, Tiago, 2Pedro, 2 e 3João e Judas. No terceiro grupo, de livros que a maioria considerava não-confiáveis, aparecem escritos que nunca foram aceitos no Novo Testamento: o Evangelho de Tomé, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho de Matias. (...)[10]

Cremos que o fato de as primeira igrejas cristãs terem reconhecido os mesmos livros como inspirados somente foi possível pela atuação do Espírito Santo de Deus, na instrução e iluminação dos crentes quanto ao que deveriam crer e quanto a quais livros continham as verdades divinamente inspiradas.


7. LIVROS APÓCRIFOS
A igreja católica romana incluiu em sua Bíblia sete livros que ficaram conhecidos como “apócrifos”: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Macabeus I e II e Baruque, bem como adições aos livros de Ester e Daniel.

Os reformadores negam que estes livros façam parte do cânon das Escrituras Sagradas, pelos seguintes motivos: 1- a igreja judaica nunca considerou tais livros como canônicos, mas manteve o mesmo cânon defendido pelos reformadores; 2- tais livros nunca foram citados por Cristo ou pelos apóstolos como canônicos; 3- ao longo dos primeiros quatrocentos anos de existência, a igreja cristã somente reconheceu o cânon defendido pelos reformadores; os autores não eram profetas ou inspirados, pois escreveram depois de Malaquias, o último dos profetas, e os livros não foram escritos em hebraico, mas em grego.

Importante mencionar que os reformadores não proíbem expressamente a leitura dos livros apócrifos, mas tão somente não os reconhecem como Palavra escrita revelada por Deus. Tais livros podem ser lidos como fontes históricas de informação, mas não como contendo a verdade divina.

“(...) Embora alguns dos livros apócrifos sejam melhores e mais corretos que outros, e contenham várias diretrizes morais úteis (como o livro de Sabedoria e o Eclesiástico), todavia porque contêm muitas outras coisas falsas e absurdas, são merecidamente excluídos do cânon da fé. (...)”[11]


8. BIBLIOGRAFIA

BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: volume 1; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

COSTA, Herminstein Maia Pereira da. A Inspiração e Inerrância das Escrituras. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

MILLER, Stephen; HUBER, Robert V. A Bíblia e sua história – o surgimento e o impacto da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006.

TURRENTINI, François. Compêndio de Teologia Apologética: volume 1; traduzido por Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.



[1] COSTA, Herminstein Maia Pereira da. A Inspiração e Inerrância das Escrituras. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p.60.
[2] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 471.
[3] TURRENTINI, François. Compêndio de Teologia Apologética: volume 1; traduzido por Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 107. 
[4] COSTA, Herminstein. Idem., p.67.
[5] COSTA, Herminstein. Idem., p.67-71
[6] TURRENTINI, François. Idem., p. 107.
[7] BAVINCK, HERMAN. Idem., p. 491.
[8] TURRENTINI, François. Idem., p. 211.
[9] TURRENTINI, François. Idem., p. 223.
[10] MILLER, Stephen; HUBER, Robert V. A Bíblia e sua história – o surgimento e o impacto da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006, p. 96
[11] TURRENTINI, François. Idem., p. 162.

Nenhum comentário:

Postar um comentário