quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Salmo 130

Das profundezas clamo a ti, SENHOR. Escuta, Senhor, a minha voz; estejam alertas os teus ouvidos às minhas súplicas. Se observares, SENHOR, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá? Contigo, porém, está o perdão, para que te temam. Aguardo o SENHOR, a minha alma o aguarda; eu espero na sua palavra. A minha alma anseia pelo Senhor mais do que os guardas pelo romper da manhã. Mais do que os guardas pelo romper da manhã, espere Israel no SENHOR, pois no SENHOR há misericórdia; nele, copiosa redenção. É ele quem redime a Israel de todas as suas iniquidades.

O Salmo 130 é um dos sete salmos “penitenciais”, juntamente com os salmos 6, 32, 38, 51, 102 e 143.

1 Das profundezas clamo a ti, SENHOR.

O salmista afirma que clama ao Senhor “das profundezas”. A que se refere essa expressão, a um lugar, a uma condição? Por que ele estava lá? O que o tinha levado para lá?

A expressão “das profundezas” denota a situação de profunda angústia que havia acometido o salmista. Ele não passava por dias tranquilos ou felizes, mas sim por dias de dor e de agonia. Eram dias especialmente difíceis.

Mesmo afundado nesse mar de aflição, o salmista tomou uma atitude: ele resolveu clamar. Mas, alguém poderia ouvi-lo? Quem?

O salmo não deixa margem para dúvida: o autor clamou ao SENHOR. Sim, ao SENHOR, com todas as letras maiúsculas, que era o verdadeiro nome de Deus, o nome que ele revelou ao seu povo e pelo qual deveria ser chamado, YHWH ou Jeová, o Criador e Sustentador do Universo, o Deus Soberano e transcendente, que é muitíssimo elevado acima de toda a criação.

Mesmo em meio à profunda dor, o salmista sabia que o seu Deus, o verdadeiro Deus, era o único que poderia ouvi-lo.

2 Escuta, Senhor, a minha voz; estejam alertas os teus ouvidos às minhas súplicas.

Além de conhecer o caráter transcendente de Deus, o SENHOR, o salmista também conhecia o caráter imanente de Deus, o Senhor. O mesmo Deus exaltado acima de tudo e de todos é o Deus que decidiu se relacionar com sua criação e se revelar aos seus filhos. Ciente disso, o salmista rogou para que Deus se atentasse para sua súplica.

Esses dois primeiros versículos do Salmo 130 revelam que, mesmo “nas profundezas”, o salmista não se esqueceu de que Deus é, simultaneamente, majestoso e atencioso ao clamor dos seus filhos. Esse correto e profundo conhecimento de Deus fez com que o autor do salmo recorresse à Fonte de águas limpas, ao Castelo forte, ao Único Deus Todo-Poderoso, capaz de ouvi-lo em todos os momentos, incluindo aquele profundo momento de angústia.

Os versículos 1 e 2 do Salmo 130 são uma oração sincera do salmista que no ensina que as circunstâncias jamais podem fazer os filhos de Deus se esquecerem de quem Ele é.

3 Se observares, SENHOR, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?

O que essa pergunta significa?

Após revelar sua situação angustiante e sua confiança no Deus verdadeiro, o salmista descreve o que o levou “às profundezas”. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, ele não foi oprimido ou castigado por outras pessoas, ou por circunstâncias adversas, ou mesmo castigado por Deus. Nada disso. O salmista revela, no versículo 3, que sua grave situação era decorrente do reconhecimento do horror dos seus pecados diante do Deus Santíssimo ao qual ele servia.

O salmista estava “nas profundezas” em razão dos seus próprios pecados, em razão da sua própria iniquidade.

Reconhecer o mal que o pecado fez e fazia em sua vida foi mais uma das grandes marcas daquele homem que, ao contrário de outros, não tentou se esconder atrás de justiça própria, e nem mesmo tentou minimizar as consequências dos seus pecados com argumentos vãos. Ele reconheceu seu estado de podridão e a necessidade de sair dessa situação.

Ciente de sua realidade e de quem Deus é, restou ao salmista questionar: “Se observares, SENHOR, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?”

Essa pergunta é por demais reveladora, é capaz de demonstrar que o salmista conhecia o seu Deus, conhecia os atributos do seu Senhor:

                - onisciência: Deus sabe de todas as coisas de foram profunda e exaustiva
                - onipotência: Deus tem a capacidade de fazer cumprir plenamente Sua Vontade
                - santidade: Deus é puríssimo e totalmente afastado do mal
                - justiça: Deus é perfeitamente correto em todo o seu proceder
                - ira: Deus age com intenso furor contra todos os que merecem sua condenação

4 Contigo, porém, está o perdão, para que te temam.

Mais atributos de Deus são expostos no versículo 4:

                - amor: Deus é amor e revela esse amor à criação de diversas maneiras
                - misericórdia: Deus não dá aos homens aquilo que merecem

Como estava “nas profundezas” em razão do seu pecado, o salmista tinha consciência de que merecia a condenação, a ira de Deus. Entretanto, ele sabia que Deus era e é misericordioso, e por isso clamou pelo perdão que somente Deus poderia dar.

Apesar de reconhecer que Deus é perdoador, o salmista declara que o perdão concedido por Deus não tem o objetivo de fornecer bem-estar ao homem, de amenizar sua situação para o seu próprio bem. O salmista declara, de forma convicta, que Deus é perdoador para que os homens reconheçam essa grande bênção divina, O temam e O adorem. O perdão concedido por Deus deveria levar os homens à adoração reverente, como forma de gratidão sincera.

Lamentavelmente, por vezes, podemos ter dificuldade em reconhecer nosso estado de pecado e de miséria diante de Deus.

Os versículos 3 e 4 do Salmo 130 nos ensinam que os cristãos devem buscar em Deus a correta percepção da gravidade dos seus pecados diante da Santidade de Deus, devem compreender os atributos do Senhor, devem clamar por perdão e devem se prostrar em intensa adoração ao Único Deus que pode perdoar pecados.

5 Aguardo o SENHOR, a minha alma o aguarda; eu espero na sua palavra.

No versículo 5 o salmista renova sua condição de espera paciente, e revela que sua esperança está firmada na palavra de Deus. É interessante notar que o salmista permanece “nas profundezas”, mas tem confiança de que a palavra de Deus é poderosa para transformar sua situação, para a própria glória do Senhor.

A confiança do salmista na palavra de Deus demonstra que ele tinha conhecimento de mais um atributo do Senhor: a imutabilidade. Como Deus não muda, sua palavra revelada também não muda, e isso garante segurança para seus filhos.

Mesmo no tempo em que o Salmo 130 foi escrito, a palavra escrita e revelada de Deus já existia, era a lei de Moisés. Essa palavra jamais mudaria, e a correta consciência dessa realidade garantia ao salmista a firmeza de depositar aí a sua esperança e aguardar com paciência o agir de Deus.

A esperança do salmista estava firmada na palavra de Deus. Onde está firmada a sua esperança?

6 A minha alma anseia pelo Senhor mais do que os guardas pelo romper da manhã. Mais do que os guardas pelo romper da manhã,

Assim como nos versículos 1-2 e 3-4, nos versículos 5-6 o salmista declara sua confiança no SENHOR e no Senhor, ou seja, no Deus transcendente imanente, no Deus majestoso e revelado ao homem. Sua esperança de perdão e de transformação de vida está firmada na palavra do Senhor, e não em qualquer outro lugar.

O salmista anseia pelo perdão que somente o Senhor poderia dar, mais do que os guardas pela manhã. Os atalaias da cidade desejavam o raiar do dia, que significaria a certeza de terem passado ilesos por mais uma noite fria e escura de prontidão contra o desconhecido. O salmista aguardava com maior intensidade o perdão e a reconciliação com o Senhor.

Os versículos 5 e 6 do Salmo 130 nos ensinam que, por vezes, podemos passar por momentos de angústia como o salmista. A consciência do horror dos nossos pecados diante de Deus pode nos levar “às profundezas”. E esses momentos podem demorar, as noites podem ser mais longas do que imaginávamos. Porém, mesmo quando isso acontecer, devemos nos espelhar na firme convicção do salmista, que aguardou o momento no qual Deus mudaria sua condição e o faria sorrir novamente.

7 espere Israel no SENHOR, pois no SENHOR há misericórdia; nele, copiosa redenção.
8 É ele quem redime a Israel de todas as suas iniquidades.

O salmista termina o seu cântico com a convocação de todo o povo de Israel para reconhecer sua condição pecaminosa, se arrepender e buscar no SENHOR o perdão. Novamente ele ressalta a necessidade de “espera paciente”, mas também reafirma a abundante misericórdia e redenção que flui de Deus.

Os versículos 7 e 8 do Salmo 130 nos ensinam que a nação de Israel somente seria abençoada se buscasse, constantemente, o perdão e a redenção do seu Deus. O salmo aponta para Cristo, que é o Redentor da criação.

Em resumo, o Salmo 130 contêm lições preciosas para nós cristãos:

1.    Independentemente das circunstâncias, nunca podemos nos esquecer de que Deus é, simultaneamente, majestoso e cuidadoso.
2.    Devemos reconhecer quem somos, pecadores carentes da misericórdia divina em todos os momentos da vida. O pecado nos traz seríssimas consequências e nos coloca debaixo da ira santa de Deus. Conscientes dessa realidade, devemos clamar pela redenção que somente o Senhor pode dar.
3.    Os momentos de angústia e sofrimento pelo pecado podem ser longos. Devemos aguardar, com paciência, o perdão e a restauração do Senhor, que nos trará o raiar de um novo dia de sol.
4.    Devemos clamar para que nossa nação reconheça Cristo como o Único Salvador e Senhor, o Soberano Deus que se encarnou, viveu, morreu e ressuscitou para redimir seus filhos.

Soli Deo Gloria.


*Para uma compreensão mais profunda desse Salmo, sugiro a pregação feita pelo Rev. Augustus Nicodemos Lopes, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q9Nl4f1Qv1Q

domingo, 7 de outubro de 2018

Quem é Jesus Cristo?


1. INTRODUÇÃO

Indo Jesus para os lados de Cesaréia de Filipe, perguntou a seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do Homem? E eles responderam: Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros: Jeremias ou algum dos profetas. Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou? Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus. Então, advertiu os discípulos de que a ninguém dissessem ser ele o Cristo. Mt 16.13-20

Quem é Jesus Cristo?

Esta é uma pergunta recorrente ao longo da história do Cristianismo, e já foi respondida de diferentes formas.

Em uma conversa, Jesus perguntou aos seus discípulos, inicialmente, quem o povo dizia ser Ele. As respostas foram variadas: João Batista, Elias, Jeremias ou alguns dos profetas. Essas respostas demonstravam que o povo debatia o assunto para formar sua opinião.

As Escrituras relatam que essa pergunta já havia sido feita por João Batista (Mt 11.3), pela multidão e pelos líderes religiosos da época (Lc 5.21, 7.49; Jo 1.19).

Após perguntar a opinião do povo, Jesus questionou os próprios discípulos. Coube a Pedro, em nome dos doze, apresentar a seguinte resposta: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

O que as Escrituras nos dizem a respeito? Qual a resposta mais adequada? Como essa resposta influencia o entendimento sobre vida cristã e evangelismo?


2. AS DUAS NATUREZAS DE CRISTO

Para responder essa pergunta é necessária uma correta compreensão sobre as duas naturezas de Cristo: a natureza humana e a natureza divina. E é exatamente a singularidade e a complexidade do Ser de Cristo que torna essa resposta tão desafiadora.

2.1. A negação da natureza divina de Cristo

Uma das primeiras tentativas de resposta foi dada pelos chamados “ebionitas”, cristãos dos primeiros séculos que negavam a natureza divina de Cristo e ressaltavam a importância da Lei de Moisés. Ficaram conhecidos como “cristãos judaizantes”.

“(...) Com o propósito de proteger e defender o monoteísmo, os ebionitas tentaram negar a divindade de Jesus Cristo, evitando assim o perigo de se ter mais de um Deus e de se acrescer mais um ser na divindade. Eles negaram a possibilidade de haver uma união entre o divino e o humano no Redentor. Um só ser não podia ser as duas coisas, Deus e homem; muito menos poderia haver dois deuses. Eles consideraram Jesus como um mero homem, apenas o filho de José e Maria, que foi qualificado no seu batismo, quando o Espírito Santo desceu sobre ele, para exercer as funções do Messias. Os ebionitas rejeitaram os ensinos de Paulo e honraram os de Tiago e Pedro. (...)”[1]

Os ebionitas creem que Jesus foi um grande mestre e profeta que foi adotado por Deus e elevado a uma condição intermediária entre Deus e os homens. Essa crença foi adotada por Ário no Século IV, pelo liberalismo do Século 18 (destaques para Kant e Schleiermacher) e atualmente pelas Testemunhas de Jeová.

O que as Escrituras dizem a respeito?

As Escrituras ensinam que Cristo é o único Filho de Deus, é verdadeiro e eterno Deus e possui a mesma substância do Pai.

Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco). Mt 1.23

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. (...) Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou. Jo 1.1-3,18

Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna. 1Jo 5.20

pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; Fp 2.6

porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade. Cl 2.9

O ebionismo é contrário ao ensinado nas Escrituras Sagradas. Seu ensino reduz Cristo a um homem que, embora seja “especial”, não é o próprio Deus.

Qual o perigo desse ensino nos dias atuais?

O ensino ebionita reduz Cristo a um mero homem e reduz o Evangelho às questões seculares, ao negar sua importância como as boas-novas da salvação. O evangelho passa a ser, apenas, uma forma de melhoria das condições sociais e morais, e o cristão o agente dessas transformações.

Para os ebionitas, ser cristão é apenas esforçar-se por ter uma moralidade elevada e ser fortemente engajado nas questões sociais, como forma de ajudar o maior número de pessoas a melhorarem sua condição humana. Essa equivocada visão do mundo justifica a supervalorização das cartas de Tiago e de Pedro, que possuem forte apelo à responsabilidade cristã quanto às questões sociais, e justifica, também, o desprezo aos ensinos do apóstolo Paulo que ressaltam a natureza divina de Cristo.

O ebionismo é contrário ao ensino fiel das Escrituras e deve ser prontamente rejeitado pelos cristãos. Por semelhante modo, as aplicações práticas desse ensino equivocado também devem ser refutadas, por negarem a divindade de Cristo, que é um dos aspectos primordiais da fé cristã.

2.1. A negação da natureza humana de Cristo

Outra tentativa de responder à pergunta “Quem é Jesus Cristo?” foi dada pelos chamados “docetistas” no Século II.

Os docetistas (do grego docetai, que significa “parecer” ou “aparência”) ensinavam que Jesus Cristo possuía apenas aparência de homem, mas não possuía um corpo físico real.

“(...) Uma tendência docética não precisa ser uma negação total da humanidade de Jesus Cristo, mas é docetismo qualquer tentativa de negar a plenitude da sua humanidade. (...)”[2]

Essa ideia foi amplamente aceita pelo gnosticismo, que defendia o dualismo grego “matéria má, espírito bom”, ou seja, a existência de dois universos totalmente distintos, o universo material (carnal), que é mau, e o universo espiritual, que é bom.

Como Cristo é o Ser Divino, ele não poderia se misturar à carne, que é má; logo, a única interpretação possível para os docetistas e para os gnósticos é que Cristo assumiu apenas uma aparência humana, como uma espécie de fantasma, mas nunca teve a natureza humana, ou seja, nunca foi um homem propriamente dito.

Outro ensino que nega a natureza humana de Cristo ficou conhecido como “modalismo”, “sabeliansmo” ou “monarquianismo”.

O modalismo nega a existência da Trindade e defende a existência de um único Deus, que se apresenta de três modos ou formas diferentes: como Criador é o Pai, como Redentor é o Filho e como santificador é o Espírito.

Essa ideia é fortemente defendida pelo livro e filme “A Cabana”.

O que as Escrituras dizem a respeito?

Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo. 2Jo 1.7

Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo. 1Jo 4.1-3

Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum acreditarei. Passados oito dias, estavam outra vez ali reunidos os seus discípulos, e Tomé, com eles. Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco! E logo disse a Tomé: Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente. Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu! Disse-lhe Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram. Jo 20.25-29

Negar a natureza humana de Cristo implica em desprezar sua morte na cruz. Se Cristo não tinha um corpo humano, mas apenas a aparência de um homem, sua morte na cruz nada significou. Consequentemente, significa desprezar sua ressurreição.

Sem a morte real e sem a ressurreição de Cristo é impossível crer na salvação ensinada pelas Escrituras.

A salvação, para os docetistas e gnósticos, seria a libertação, definitiva, do espírito da prisão ao qual estava submetido, que era o corpo. Salvação significaria, tão somente, a libertação do espírito e a destruição do corpo.

Por mais espantoso que pareça, essa ideia tem ganhado força nos tempos atuais. Muitos cristãos defendem que Cristo não se preocupa com o corpo, pois veio para salvar apenas o espírito (ou a alma). Sendo assim, cada pessoa pode viver como melhor lhe parecer, desde que seu espírito (ou alma, muitas vezes confundida com a razão) esteja “voltado para Deus”.

Na prática, essas pessoas vivem totalmente afastadas de Deus e dos Seus ensinamentos práticos, mas, periodicamente, participam de eventos “religiosos”, nos quais têm “contato” com o divino para “alimentar seu espírito”.

Outra consequência negativa do docetismo é a alienação dos cristãos atuais quanto aos problemas da sociedade, que, não raro, implica em verdadeira fuga desses assuntos. As igrejas passam a evitar o ensino dos temas atuais, como política, economia, relacionamentos interpessoais etc., e restringe-se aos temas doutrinários. O Evangelho passa a ser pregado apenas de forma individual, e não mais de forma abrangente, tanto no modo de exposição quanto aos efeitos de transformação. Tem-se perdido de vista o grande poder do Evangelho de Cristo, que transforma tanto o espírito como a carne, tanto a mente como o coração.

O docetismo é contrário ao ensino fiel das Escrituras e, tal como o ebionismo, deve ser prontamente rejeitado pelos cristãos. As aplicações práticas desse ensino equivocado também devem ser refutadas, por negarem a humanidade de Cristo, que também é um dos aspectos primordiais da fé cristã.


3. A UNIÃO DAS DUAS NATUREZAS DE CRISTO E SEU IMPACTO NA EVANGELIZAÇÃO

As Escrituras ensinam que é heresia negar tanto a natureza divina como a natureza humana de Cristo. Isso impacta grandemente a noção de evangelização dos cristãos.

Evangelizar não significa pregar, de forma individual, apenas os temas doutrinários, por meio dos quais as pessoas aprenderão sobre a realidade espiritual. Cristo também não cumpriu o plano da Redenção apenas para transformar o espírito dos seus filhos, mas sim para transformar todos os aspectos das suas vidas.

Evangelizar também não significa pregar apenas que Cristo é capaz de dar aos seus filhos uma moralidade elevada e transformar sua realidade social. Cristo não cumpriu o plano da Redenção apenas para transformar a realidade social dos seus filhos, mas sim para transformar todos os aspectos das suas vidas.

“(...) Essas duas perspectivas padecem de limitações. A primeira, de tendência docética, pode levar, e com frequência leva, a uma atitude de alienação e escapismo em relação aos problemas do mudo e da sociedade. É característica de boa parcela do evangelicalismo conservador e entusiástico. A outra perspectiva é igualmente reducionista, limitando a aplicação dos ricos conceitos bíblicos de libertação e reconciliação ao plano social e político. O reino de Deus passa a ser visto exclusivamente em termos terrenos, de transformação das estruturas mediante a ação humana, e Cristo torna-se um mero símbolo e um exemplo a ser seguido nesse esforço. O ideal é que os cristãos, em sua reflexão e em sua práxis, recuperem a visão bíblica holística de Jesus Cristo, como aquele cuja obra libertadora e reconciliadora abrange todas as dimensões da existência. (...)”[3]

Responder de forma correta sobre “Quem é Cristo Jesus?” é responder, de forma correta, sobre as duas naturezas do Redentor.

A resposta de Pedro “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, é a resposta humana mais adequada a essa pergunta, pois exalta tanto a natureza divina como a natureza humana de Cristo.

“(...) A única resposta adequada à questão colocada por Jesus foi dada por Pedro nas palavras, Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Pedro sabia que Jesus não era apenas outro na longa linha de profetas aos quais o Deus vivo falara de muitas maneiras diferentes no passado, mas era o Filho desse Deus vivo que conhecia, como somente esse Filho poderia conhecer, a mente e os propósitos do seu Pai. (...)”[4]

“(...) Jesus fez a pergunta para todos os discípulos; Pedro respondeu em nome dos Doze. Sua declaração de que Jesus é “o Cristo” (v. 16) reflete a percepção de que Jesus era o esperado rei escatológico profetizado no Antigo Testamento. (...)”[5]

Os cristãos necessitam estudar as Escrituras com esforço e necessitam clamar a Deus, constantemente, para que Ele aplique esse ensinamento nos corações dos seus filhos.

Os cristãos que compreendem quem é Cristo compreendem, também, qual é a forma bíblica de evangelizar, que implica em anunciar Cristo como o Salvador do espírito e do corpo, ou seja, como Salvador de todas as áreas do ser humano.

Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Rm 1.16

A Igreja de Cristo deve se esforçar no estudo dos temas doutrinários, de modo a compreender melhor a realidade espiritual, e deve se esforçar, do mesmo modo, no estudo dos temas seculares, de modo a compreender melhor a realidade social da qual faz parte e atuar para modificá-la.

Evangelizar é levar ao perdido tanto a Palavra da Salvação quanto as ações sociais que dignificam a pessoa. A Igreja necessita pregar, orar e agir em favor dos perdidos, pois, assim, demonstrará concordância e honrará a definição de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

Soli Deo Gloria.


4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS

BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, Cultura Cristã, 2009. 1920 p.

CAMPOS, Heber Carlos de. As duas naturezas do Redentor. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 544 p.

MATOS, Alderi Souza de. A caminhada cristã na História: A Bíblia, a igreja e a sociedade ontem e hoje. Viçosa/MG: Ultimato, 2005. 256 p.

TASKER, R.V.G. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2011. 229 p.


[1] CAMPOS, Heber Carlos de. As duas naturezas do Redentor. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 139-140.
[2] Ibidem, p. 348.
[3] MATOS, Alderi Souza de. A caminhada cristã na História: A Bíblia, a igreja e a sociedade ontem e hoje. Viçosa/MG: Ultimato, 2005, p. 95.
[4] TASKER, R.V.G. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2011, p.126.
[5] BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, Cultura Cristã, 2009. Nota de rodapé sobre Mt 16.15-16, p. 1256.