terça-feira, 11 de outubro de 2016

Teologia Sistemática 1 - aula 12 - Doutrina da Providência


TÓPICOS DA AULA
1. Definição
2. Preservação
3. Concorrência
4. Governo
5. Bibliografia


1. DEFINIÇÃO
Nesta última aula sobre Teologia Sistemática 1 aprenderemos um pouco sobre a Doutrina da Providência. Embora o termo “providência” não se encontre nas Escrituras Sagradas, seu significado pode ser facilmente notado em todas as suas páginas, por meio do relacionamento constante do Criador com sua criação.

“(...) Pode-se definir a providência como o permanente exercício da energia divina, pelo qual o Criador preserva todas as suas criaturas, opera em tudo que se passa no mundo e dirige todas as coisas para o seu determinado fim. (...)”[1]


Essa definição aponta três palavras que expressam o relacionamento do Criador com a criação: preservação, concorrência e governo. Não são três formas distintas de relacionamento, pois elas estão intimamente interligadas, sendo que cada uma delas compõe a totalidade da relação de Deus com o mundo. Essas três palavras servem mais para efeitos didáticos, a fim de facilitar nossa compreensão quanto à forma como o Senhor cuida de tudo aquilo que criou.

“(...) Desde o início, a preservação também é governo, governo é concorrência e concorrência é criação. A preservação nos diz que nada existe, nem uma só substância, e também nem um só poder, nenhuma atividade, nenhuma ideia, a menos que exista totalmente a partir de Deus, por meio dele e para ele. A concorrência torna conhecida a nós a mesma preservação como uma atividade que, em vez de suspender a existência das criaturas, acima de tudo a assegura e sustenta. O governo descreve os outros dois aspectos como guiando todas as coisas de tal modo que o objetivo final determinado por Deus seja alcançado. E sempre, do começo ao fim, a providência é um poder simples, todo-poderoso e onipotente. (...)”[2]


As Escrituras estão repletas de textos que afirmam a soberania divina sobre toda a criação, seu interesse e seu cuidado constantes por ela.

Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. At 17.28

Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém. Rm 11.36

O SENHOR olha dos céus; vê todos os filhos dos homens; do lugar de sua morada observa todos os moradores da terra, ele que forma o coração de todos eles. Sl 33.13-15


2. PRESERVAÇÃO
A doutrina da preservação nos ensina que Deus é o único responsável pela manutenção da existência da criação. Tudo que existe somente permanece em existência pela obra constante do Criador. Se Deus não preservar alguma criatura, ela imediatamente deixará de existir. Apesar de ter sua existência distinta de Deus, no sentido de não ser o próprio Criador, a criação depende total e exclusivamente Dele para continuar a existir.

“(...) A preservação pode ser definida como a obra contínua de Deus pelo qual ele mantém as coisas que criou, juntamente com as propriedades e poderes de que as dotou. (...)”[3]


Neste ponto, cabe afastar um grave erro de interpretação dessa doutrina, qual seja, que a preservação não é meramente negativa, ou seja, ela não significa apenas que Deus não destrói aquilo que criou. Esse raciocínio, defendido pelos deístas, é irracional, pois implica que Deus criou algo que pode subsistir independentemente da Sua ação, algo “autossustentável”; se isso fosse verdade, Deus não seria soberano, e, portanto, não seria Deus; é irreligioso, porque afasta a criação do Criador, impossibilitando o relacionamento entre ambos; é antibíblico, porque nega o constante cuidado de Deus com tudo que Ele mesmo criou.

Seguem alguns textos bíblicos a respeito da preservação divina:

Só tu és SENHOR, tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora. Ne 9.6

Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Mt 10.29-30

Eis que eu estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores, e te farei voltar a esta terra, porque te não desampararei, até cumprir eu aquilo de que te hei referido. Gn 28.15


A preservação decorre da soberania divina. Deus é soberano, e isso significa que Ele tem total poder sobre toda a criação. Tudo que existe depende do Criador para continuar existindo, não há nada nem ninguém em toda a criação totalmente livre ou independente, no sentido de não depender de Deus. Além disso, a vontade do Senhor é sempre efetuada, nada acontece independentemente do Seu querer.


3. CONCORRÊNCIA

“(...) Pode-se definir a concorrência como a cooperação do poder divino com todos os poderes subordinados, em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir precisamente como agem. (...)”[4]


De imediato, podemos aprender duas verdades contidas neste conceito da concorrência divina:

a) As forças pré-estabelecidas, conhecidas como “forças da natureza”, não existem independentemente de Deus, mas foram criadas por Ele exatamente da forma como existem. Por semelhante modo, essas forças não atuam livremente, mas estão total e constantemente subordinadas à vontade divina. Elas foram criadas e atuam em conformidade com os propósitos do Criador.

b) Somente existe “concorrência” porque duas ou mais causam atuam conjuntamente, no caso, Deus e as criaturas. Isso nos leva a concluir que as criaturas também possuem certo poder de ação dentro do Universo, e é este o fundamento para defender sua responsabilização, positiva ou negativa, pelas consequências dos seus atos.

As Escrituras atestam essas afirmações:

Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui; porque para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vós. Gn 45.5

Respondeu-lhe o SENHOR: Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o SENHOR? Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca, e te ensinarei o que hás de falar. Ex 4.11-12

Tu falarás tudo o que eu te ordenar; e Arão, teu irmão, falará a Faraó, para que deixe ir da sua terra os filhos de Israel. Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó, e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas. Ex 7.2-3

Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina. Pv 21.1


A concorrência divina nos ensina que não há nenhum ato das criaturas totalmente independente de Deus. É o Criador quem capacita e energiza as criaturas a agirem. É Ele também quem acompanha as criaturas em suas ações, de forma que sempre atinjam seus propósitos santos, justos e bons.

E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. 1Co 12.6

nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. Ef 1.11

porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. Fp 2.13


A grande objeção que sempre é colocada contra a doutrina da concorrência divina é que ela destrói a responsabilidade humana. Já enfrentamos essa questão quando tratamos da vontade e dos decretos divinos (Aula 08), pelo que cabe apenas relembrar os dois pontos principais que elucidam quaisquer dúvidas: 1- as Escrituras não veem contradição entre as duas questões; em que pese agirem motivados e capacitados por Deus, os homens são sempre responsabilizados por seus atos, quer sejam bons, quer sejam maus; 2- o conceito de liberdade humana é ilusório, pois a Queda afetou gravemente todas as faculdades do homem e tornou o homem escravo do pecado. Não foi a concorrência divina que retirou do homem sua “liberdade”, mas sim o pecado.

A concorrência divina também não torna Deus o autor do pecado, conforme brevemente exposto na Aula 08 e transcrito abaixo:

O decreto divino em relação ao pecado é costumeiramente denominado como permissivo, no sentido de que Deus tornou as ações do homem infalivelmente certas de acontecerem, sem agir de forma positiva no homem. O decreto torna certa a realização do ato pecaminoso, no qual Deus decidiu não impedir a determinação pecaminosa do homem e decidiu regular os efeitos dessa atitude humana. Deus criou o homem como um ser moral livre, e o homem utilizou-se dessa liberdade para pecar, sendo, portanto, o homem o único autor do pecado.

“(...) O problema da relação de Deus com o pecado continua sendo um mistério para nós, mistério este que não somos capazes de resolver. Pode-se dizer, porém, que o seu decreto de permitir o pecado, embora assegure a entrada do pecado no mundo, não significa que ele tem prazer nele; significa somente que ele considerou sábio, com o propósito da sua autorrevelação, permitir o mal moral, por mais detestável que seja a sua natureza. (...)”[5]

“(...) O concurso divino dinamiza o homem e o determina eficazmente ao ato específico, mas é o homem que dá ao ato a sua qualidade formal e que, portanto, é responsável por seu caráter pecaminoso. (...)”[6]


4. GOVERNO

“(...) Pode-se definir o governo divino como a contínua atividade de Deus pela qual ele rege todas as coisas teleologicamente a fim de garantir a realização do propósito divino. (...)”[7]


Essa doutrina revela Deus como o grande rei que governa o Universo conforme seus propósitos. Ao contrário das afirmações de alguns teólogos, Deus não deixou de ser o grande Rei do Antigo Testamento para tornar-se apenas o Pai amoroso do Novo Testamento. Ele sempre foi e continua sendo tanto Rei como Pai e deve ser servido e adorado desta forma por toda a criação.

Por aquele tempo exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Mt 11.25

O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. At 17.24

Assim, ao Rei eterno, imortal, invisível, Deus único, honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém. 1Tm 1.17


O governo divino é universal, abrange todas as coisas, mesmo as mais insignificantes. Nada passa despercebido ou é desprezado por Deus. Todas as coisas ocorrem por sua vontade soberana e para alcançar seus objetivos, dos quais, o mais elevado, sem dúvida, é demonstrar sua gloriosa majestade às criaturas e conduzi-las à adoração sincera.

Deus é o rei de toda a terra, salmodiai com harmonioso cântico. Deus reina sobre as nações: Deus se assenta no seu santo trono. Os príncipes dos povos se reúnem, o povo do Deus de Abraão, porque a Deus pertencem os escudos da terra: ele se exaltou gloriosamente. Sl 47.7-9


5. BIBLIOGRAFIA

BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: volume 1; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª Edição Revisada. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.




[1] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª Edição Revisada. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p.154.
[2] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 617.
[3] BERKHOF, Louis. Idem., p.157
[4] BERKHOF, Louis. Idem., p.158
[5] BERKHOF, Louis. Idem., p. 102.
[6] BERKHOF, Louis. Idem., p. 161.
[7] BERKHOF, Louis. Idem., p. 161.

Teologia Sistemática 1 - aula 11 - Doutrina da criação


TÓPICOS DA AULA
1. Definição
2. Ato da Trindade
3. Ato temporal
4. Criação ex nihilo
5. Existência distinta de Deus
6. Finalidade da criação
7. Bibliografia


1. DEFINIÇÃO
Após estudarmos os decretos de Deus de uma ótica mais teórica, passaremos a analisar o aspecto prático, ou seja, como o Criador executou sua vontade, que teve início com a obra da criação.

O primeiro texto das Escrituras cuidou de apresentar Deus como o Criador dos céus e da terra.

No princípio, criou Deus os céus e a terra. Gn 1.1


Essa verdade é expressa desde o início da igreja cristã, e é a primeira afirmação contida no Credo Apostólico:

“(...) Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra. (...)”[1]


A Confissão de Fé de Westminster define a obra da criação da seguinte forma:

“(...) No princípio, aprouve a Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para manifestação da glória de seu eterno poder, sabedoria e bondade, criar ou fazer do nada, no espaço de seis dias, e tudo muito bom, o mundo e tudo o que nele há, visível ou invisível. (...)”[2]


2. ATO DA TRINDADE
As Escrituras afirmam que a criação não foi um ato exclusivo de Deus Pai, mas sim um ato da Trindade. Deus criou todas as coisas por meio do Filho e por meio do Espírito Santo.

“(...) Nesse contexto, o Filho e o Espírito não são vistos como forças secundárias, mas como agentes ou “princípios” (principia) independentes, como autores (auctores) que, como o Pai, realizaram a obra da criação e que, com ele, também constituem o único Deus verdadeiro. (...)”[3]

Vejamos alguns textos bíblicos que expressam essa verdade:

Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Jo 1.3

Porque, ainda que há também alguns que se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a terra, como há muitos deuses e muitos senhores, todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também por ele. 1Co 8.5-6

Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade na alturas, Hb 1.3

A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Gn 1.3

O Espírito de Deus me fez; e o sopro do Todo-poderoso me dá vida. Jó 33.4

Envias o teu Espírito, eles são criados, e assim renovas a face da terra. Sl 104.30


A obra da criação foi inteiramente efetuada pela Trindade, o que demonstra sua unidade; por outro lado, cada Pessoa da Trindade exerce uma função ou tarefa nessa obra: a iniciativa procede do Pai, todas as coisas são criadas pelo Filho e o Espírito é quem dá e mantém a vida a tudo que existe.

“(...) Todas as coisas se originam simultaneamente do Pai por meio do Filho e do Espírito. O Pai é a causa primária: a iniciativa para a criação procede dele. Logo, em um sentido administrativo, a criação é especificamente atribuída a ele. O Filho não é um instrumento, mas a sabedoria pessoal, o Logos, por meio de quem tudo é criado: tudo subsiste nele (Cl 1.17) e é criado para ele (Cl 1.16) não como seu objetivo final, mas como cabeça e mestre de todas as criaturas (Ef 1.10). E o Espírito Santo é a causa pessoal imanente pela qual todas as coisas vivem, se movem e têm seu ser, recebem sua própria forma e configuração e são levadas ao seu destino, em Deus. (...)”[4]


3. ATO TEMPORAL
Uma questão que sempre intrigou muitas pessoas é a relação entre a criação e o tempo. Os seres humanos têm facilidade em perceber o início de tudo que existe. Todas as coisas tiveram início em algum momento do tempo. Entretanto, o que existia antes do momento em que Deus criou o mundo? O que Deus fazia antes disso? Se Deus é imutável, como Ele passou de um período de inatividade para um período de atividade?

Para responder essas perguntas, é necessário pensarmos um pouco sobre a relação da criação com o tempo e a eternidade.

Um equívoco a ser afastado é o fato de se conceber o tempo como algo absoluto, fora da criação. Isso é um erro. O tempo foi criado juntamente com a criação, ou seja, antes da criação também não havia tempo. Por sua vez, a ideia de eternidade não se confunde com a soma de todos os tempos existentes. O conceito de eternidade está totalmente separado da ideia de tempo. Na eternidade não há passado, presente ou futuro, antes ou depois, pois todas essas definições estão presas ao tempo. A ideia de eternidade é difícil de ser compreendida pelos homens exatamente porque está fora e acima do tempo.

“(...) Por mais que seja indefinidamente estendido, o tempo continua sendo tempo e nunca se torna eternidade. Há uma diferença essencial entre os dois. O mundo não pode ser concebido sem o tempo. A existência no tempo é a forma necessária de tudo que é finito e criado. O predicado de eternidade nunca pode, estritamente falando, ser atribuído a coisas que existem na forma do tempo. Semelhantemente, a questão de se Deus não podia ter criado desde a eternidade está baseada na identidade de eternidade e tempo. Na eternidade, não há “antes” e “depois”. Deus criou eternamente o mundo, isto é, no momento em que o mundo veio à existência, Deus era e continuou sendo o Eterno, e, como o Eterno, criou o mundo. (...)”[5]


Deus é eterno, e isso significa que Ele está acima, fora do tempo. Deus não está preso ao tempo, pois foi Ele quem criou o tempo. Logo, é totalmente descabida a ideia do homem de questionar o que Deus fazia antes de criar tudo o que existe. Tal pergunta revela, em verdade, a falta de capacidade do homem de compreender a grandeza de Deus, por um lado, e a arrogância do ser humano em querer limitar Deus à sua própria capacidade de raciocínio, por outro.


4. CRIAÇÃO EX NIHILO
A igreja cristã sempre defendeu que Deus criou todas as coisas “do nada”, da não-existência para a existência. Para criar o mundo, Deus não trabalhou com qualquer tipo de matéria preexistente, mas Ele mesmo trouxe à existência tudo por meio da Sua Palavra Criadora.

Essa doutrina foi e continua sendo muito questionada por diversos estudiosos, sob os seguintes argumentos: 1- as Escrituras não afirmam claramente que Deus criou todas as coisas “do nada”; 2- Gênesis 1.2 pressupõe a existência de uma terra “sem forma e vazia” no ato criador de Deus.

Esses argumentos não se sustentam à luz da análise completa das Escrituras. Ao longo de toda a Bíblia, Deus se apresenta como o Todo-Poderoso, detentor de toda a sabedoria e cuja vontade é soberana.  Ele é infinitamente mais exaltado do que toda a criação, e tudo foi feito por meio Dele, por Ele e para Ele. O Criador é eterno, infinito e suficiente, Ele é o sustentador de toda a criação, que lhe dá glória continuamente.

Abençoou ele a Abrão, e disse: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo; que possui os céus e a terra; Gn 14.19

Tema ao SENHOR toda a terra, temam-no todos os habitantes do mundo. Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir. Sl 33.8-9

Também a minha mão fundou a terra, e a minha destra estendeu os céus; quando eu os chamar eles se apresentarão juntos. Is 48.13

Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém. Rm 11.36

Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste. 1Co 1.17

Tu és digno Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas. Ap 4.11


O texto de Hebreus 11.3 é um dos mais esclarecedores quanto ao fato de Deus ter criado todas as coisas unicamente pela Sua Palavra poderosa, sem a existência de material preexistente.

Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. Hb 11.3

“(...) Com essa revelação, a existência de uma “matéria sem forma” é totalmente descartada. O mundo visível não procedeu daquilo que é visível, mas repousa em Deus, que chamou todas as coisas à existência por sua palavra. (...)”[6]


A doutrina da criação “do nada” é importante por ensinar a absoluta soberania de Deus e a absoluta dependência do homem. O homem está preso à matéria, é feito dela, mas Deus é totalmente livre e independente. As criaturas foram criadas e dependem do Criador, mas Ele não depende de nada nem de ninguém. Se existisse qualquer coisa que não tivesse sido criada por Deus, essa coisa seria independente, e, portanto, Deus não seria o Absoluto, Ele não seria Deus. Isso é inconcebível e totalmente contrário ao ensino das Escrituras.


5. EXISTÊNCIA DISTINTA DE DEUS
Como visto, o mundo foi criado pela vontade soberana de Deus, por Sua Palavra poderosa. Ao contrário do que afirmam os panteístas, o mundo não é uma parte de Deus, Deus não se limita ao Universo criado por Ele mesmo e tampouco depende ou necessita das coisas criadas. Deus é muito maior e mais exaltado que a criação, Ele é transcendente, totalmente glorioso e opera grandes maravilhas.

“(...) Quer dizer que o mundo não é Deus, nem alguma parte de Deus, mas algo absolutamente distinto de Deus; e que difere de Deus, não meramente em grau, mas em suas propriedades essenciais. A doutrina da criação implica que, enquanto Deus é auto existente e autossuficiente, infinito e eterno, o mundo é dependente, finito e temporal. Um jamais poderá transformar-se no outro. (...)”[7]


Apesar de ser distinto de Deus, o mundo é totalmente dependente Dele. Esse é o ensinamento constante nas Escrituras, o que joga por terra a ideia deísta de que Deus criou o Universo e afastou-se dele. Por ser imanente, Deus está presente em toda a criação e age constantemente para cuidar de tudo o que foi criado. Deus está presente e é plenamente ativo no cuidado da sua criação.

Para onde me ausentaria do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me haverá de guiar a tua mão e a tua destra me susterá. Sl 139.7-10

um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos. Ef 4.6


6. FINALIDADE DA CRIAÇÃO
Outra questão bastante debatida ao longo da história foi o motivo pelo qual Deus criou o mundo. Qual o objetivo final da criação? De modo geral, os estudiosos dividiram-se entre duas respostas. Para uns, a finalidade da criação é a felicidade da humanidade; para outros, é a glória Deus.

Alguns dos mais importantes filósofos da antiguidade, como Platão, Filo e Sêneca, afirmaram que o mundo foi criado pela bondade de Deus. Sendo o Criador suficiente em si mesmo, ele não tem necessidade de nada, o que os levou a acreditar que a criação do Universo não teve o objetivo de satisfazer algo em Deus. Sendo o homem a obra divina mais perfeita e complexa, a finalidade da criação só pode ter sido a felicidade da humanidade.

Esse raciocínio parece atrativo à primeira vista, entretanto, uma análise mais aprofundada demonstra que ele é equivocado.

Deus demonstrou amor e bondade na obra da criação, mas isso não significa que esses atributos não existiam antes da criação. Como já vimos nas aulas anteriores, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito possuem desde a eternidade uma relação intensa e perfeita, muito superior às relações existentes entre o Criador e as criaturas. Por sua vez, a ausência de necessidades em Deus não o impede de agir conforme sua suprema sabedoria e vontade soberana, e tampouco coloca a felicidade humana como o objetivo final da criação.

A igreja cristã defende que a finalidade da criação é a glória de Deus. Deus criou o Universo para demonstrar sua glória e majestade. Isso não implica na existência de alguma carência ou necessidade divina, pois Ele é perfeito. Deus não criou o mundo por necessidade, mas por Sua vontade soberana e para a demonstração de Sua glória.

“(...) Não significa que Deus receber glória da parte dos outros seja o fim último. O recebimento de glória por meio de louvores prestados por suas criaturas morais é um fim que está incluído no fim supremo, mas não constitui em si mesmo esse fim. Deus não criou primeiramente para receber glória, mas para tornar a sua glória saliente e manifesta. As gloriosas perfeições de Deus são demonstradas em toda a sua criação; e esta demonstração não é para uma vã mostra, para uma exibição para ser meramente admirada pelas criaturas, mas vista também a promoção do seu bem-estar e da perfeita felicidade. (...)”[8]


Da mesma forma, é incorreto afirmar que o plano de criação divino é egoísta. Deus não é egoísta, pois não se preocupa exclusivamente consigo mesmo; muito ao contrário, desde o início da criação Deus demonstra seu amor intenso e constante por tudo que criou. Essa afirmação apenas comprova que o foco está apontado para o lado errado, ou seja, ao invés de compreender a obra da criação com os olhos fitos no Criador, muitas pessoas tentam fazê-lo com os olhos voltados para si mesmos. Acusar Deus de egoísmo demonstra grave ingratidão e desrespeito.

Como dito, a demonstração da majestade divina visa também o bem-estar das criaturas. O amor de Deus para com a criação é tão grande que Ele preocupa-se em cuidar do Universo. Além de criar, Deus bondosamente preserva o mundo. Essa ação divina deve ser mais um motivo para a adoração sincera e constante por parte da criação. Deus deve ser adorado por quem Ele é e pelo que Ele faz.


7. BIBLIOGRAFIA

BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: volume 1; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª Edição Revisada. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.



[1] CREDO APOSTÓLICO
[2] CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER, Cap. IV, I.
[3] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada; traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 430.
[4] BAVINCK, Herman. Idem., p. 432.
[5] BAVINCK, Herman. Idem., p. 437.
[6] BAVINCK, Herman. Idem., p. 427.
[7] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª Edição Revisada. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p.125.
[8] BERKHOF, Louis. Idem., p.127.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Teologia Sistemática 1 - aulas 09 e 10 - Predestinação


TÓPICOS DA AULA
1. Definição de pecado
2. Consequências do pecado
3. Interpretações divergentes
   3.1. João Cassiano e o semipelagianismo
   3.2. Jacó Armínio
4. O Sínodo de Dort
5. Eleição incondicional x presciência
   5.1. O homem caído: vontade livre ou escravidão?
   5.2. A escolha de Jacó e a rejeição de Esaú
   5.3. Injustiça da parte de Deus?
6. Livre-arbítrio: definição
   6.1. A vontade humana é livre ou motivada?
   6.2. Capacidade natural e capacidade moral
   6.3. A visão de Jesus sobre a capacidade moral do homem
7. Graça irresistível: Deus força as pessoas a irem para o céu?
   7.1. A graça de Deus na obra da redenção
8. Bibliografia



1.  DEFINIÇÃO DE PECADO

“Pecado é qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão desta lei.”[1]

Todo aquele que pratica o pecado, também transgride a lei: porque o pecado é a transgressão da lei. I Jo 3:4

Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem, e não o faz, nisso está pecando. Tg 4:17


As Escrituras nos ensinam que o primeiro pecado cometido pelo homem foi o comer do fruto proibido.

“O pecado pelo qual nossos primeiros pais caíram do estado em que foram criados foi o comerem do fruto proibido.”[2]

Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu. Gn 3:6


2. CONSEQUÊNCIAS DO PECADO

As Escrituras afirmar que o gênero humano caiu na primeira transgressão de Adão, devido ao fato de que Adão era o representante perfeito de toda a raça humana. Isso é perfeitamente justo, pois Adão foi escolhido como representante da raça humana pelo próprio Criador, ou seja, não há como imaginar que qualquer outra pessoa além do próprio Criador teria feito uma escolha melhor. Isso seria o mesmo que imaginar alguma criatura com capacidade de escolha melhor do que o próprio Deus.

“Visto que o pacto foi feito com Adão, não só para ele, mas também para a sua posteridade, todo o gênero humano, que dele procede por geração ordinária, pecou nele e caiu com ele na sua primeira transgressão.”[3]

Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Rm 5:12

Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo. I Co 15:22

“A ideia principal do federalismo é que, quando Adão pecou, ele pecou por todos nós. Sua queda foi a nossa queda. Quando Deus puniu Adão por levar embora sua justiça original, nós fomos igualmente punidos. A maldição da queda afeta a todos nós. Não somente Adão foi destinado a ganhar a vida com o suor do seu rosto, como isso tornou-se verdade para nós também. Não somente Eva foi designada para ter dores de parto, como isso tem sido verdade para as mulheres de todas as gerações. A serpente errante no jardim não foi o único membro de sua espécie que recebeu a maldição de rastejar sobre seu ventre. Quando foram criados, foi dado a Adão e Eva o domínio sobre a criação inteira. Como resultado de seu pecado, o mundo todo sofreu.”[4]

“Portanto, todos que descendemos de uma semente impura, nascemos infeccionados pelo pecado. Na verdade, antes que contemplemos esta luz da vida, à vista de Deus já estamos manchados e poluídos. Pois, “quem do imundo tirará o puro? Certamente, como está no Livro de Jó (14.4), ninguém!”[5]


Relação entre o homem e o pecado:

O homem antes da  queda
O homem depois da queda
O homem renascido
O homem glorificado
Capaz de pecar
Capaz de pecar
Capaz de pecar
Capaz de não pecar
Capaz de não pecar
Capaz de não pecar
Incapaz de não pecar
Incapaz de pecar

Situação do homem após o nascimento:

- Morto em seus delitos e pecados (= morto espiritualmente);
- Afastado de Deus;
- Preso ao pecado (não possui liberdade);
- Escravo de Satanás;
- Condenado ao inferno.

Ninguém é bom, senão um, que é Deus. Lc 18:19b

Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nenhum sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios; a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos. Rm 3:10-18


3. INTERPRETAÇÕES DIVERGENTES
3.1. JOÃO CASSIANO E O SEMIPELAGIANISMO

Apesar da clareza das Escrituras quanto às consequências da Queda, alguns teólogos ao longo da história da Igreja Cristã tentaram amenizar este assunto a fim de torná-lo mais “agradável” aos ouvidos das pessoas.

Um desses teólogos foi João Cassiano, diácono e padre que viveu ma Europa do Século I. Ele defendeu que a vontade humana foi mutilada pelo pecado, mas uma certa liberdade permaneceu nela. Por causa disso, segundo ele, o homem é capaz de se voltar para Deus. O pecador não está morto, mas ferido. A graça não opera a salvação, mas coopera com a decisão do homem de buscar a Deus.

Cassiano insistiu que a graça e necessária para a justiça, no entanto, é resistível. Porque para ser efetiva, a vontade humana deve cooperar com ela.

“A graça de Deus é a base da nossa salvação; cada começo deve ser traçado por ela, porquanto ela proporciona a chance da salvação e a possibilidade de se ser salvo. Mas essa é a graça exterior; a graça interior é a que se apodera do homem, aclara, purifica, santifica e penetra tanto na sua vontade quanto na sua inteligência. A virtude humana não pode crescer nem ser aperfeiçoada sem essa graça — logo, as virtudes dos pagãos são muito pequenas. Mas o início das boas decisões, bons pensamentos e fé — entendidos como a preparação para a graça — pode ser devido a nós mesmos. Consequentemente, a graça é absolutamente necessária para alcançarmos a salvação final (perfeição), mas não tanto para dar a partida. Ela nos acompanha em todos os estágios do nosso crescimento interior, e as nossas manifestações não são úteis sem ela (libero arbitrio semper co-operatur); mas ela apenas apoia e acompanha aquele que realmente se esforça... mesmo essa... ação da graça não é irresistível”.[6]


Em resumo, as principais doutrinas do semipelagianismo são: 1- o homem caído ainda tem condições de buscar a Deus; 2- a graça de Deus pode ser resistida pelo homem.

“O problema dos semipelagianos foi ensinar que a natureza humana, de si mesma, podia dar o primeiro passo em direção a Deus (initium fidei ou fé inicial). Em outros termos, eles opinavam que o ser humano é salvo somente pela graça de Deus, mas esse processo começa com a iniciativa de uma boa disposição do coração humano para com Deus.
A declaração mais famosa e controvertida de Cassiano foi aquela em que, na sua obra Conferências, ao referir-se ao princípio da boa-vontade para com Deus, ele disse que Deus aumenta “aquilo que Ele mesmo implantou ou que percebeu ter nascido de nosso próprios esforços.” Seus adversários agostinianos, como Próspero de Aquitânia, alegaram com razão que isso não era muito diferente do pelagianismo.
Em síntese, o semipelagianismo é a idéia de que a natureza e a iniciativa humanas, por si sós, sem a graça sobrenatural auxiliadora, são capazes de provocar a resposta de Deus no sentido de conceder a graça salvífica.”[7]

Seguem abaixo alguns textos que refutam as ideias do semipelagianismo:

A alma que pecar, essa morrerá (...). Ez 18:20

Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Rm 5:12

porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. Rm 6:23

Fui buscado pelos que não perguntavam por mim; fui achado por aqueles que não me buscavam; a um povo que não se chamava do meu nome, eu disse: Eis-me aqui, eis-me aqui.         Is 65:1

(...) Ao Senhor pertence a salvação. Jn 2:9

Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus. Fp 1:6

porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. Fp 2:13

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Ef 2:8

Porque sem mim nada podeis fazer. Jo 15:5

Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to damos. 1Cr 29:14

Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.  Jo 8:36

O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada. Jo 3:27



3.2. JACÓ ARMÍNIO

Outro teólogo de destaque que inovou na interpretação da soberania de Deus na salvação foi Jacó Armínio, holandês que viveu no Século XVI.

Armínio questionava a graça soberana de Deus pregada pelos reformadores. Era simpático aos ensinos de Pelágio e Erasmo de Roma, que pregavam que o homem possuía livre vontade para escolher/buscar a Deus.

Em 1610, após a morte de Armínio, seus discípulos formularam seus ensinos em cinco pontos, conhecidos como CINCO PONTOS DO ARMINIANISMO (FACTS).

Freed by Grace (to Believe) – Livre pela graça (para crer)
Atonement for All – Expiação para Todos
Conditional Election – Eleição Condicional
Total Depravity – Depravação Total
Security in Christ – Segurança em Cristo

Os discípulos de Armínio apresentaram uma representação (que ficou conhecida como “Remonstrância”) ao Parlamento Holandês, para que os cinco pontos do arminianismo fossem declarados como o novo padrão doutrinário daquele país.


4. O SÍNODO DE DORT

Para decidir a questão, foi convocado o Sínodo de Dort, que contou com 84 teólogos + 13 delegados seculares, reunidos por cerca de 7 meses, de 13 de novembro de 1618 a maio de 1619.

Ocorreram 154 reuniões, nas quais os Cinco Pontos do Arminianismo foram examinados e comparados com o ensino das Escrituras Sagradas. Ao final desse intenso e profundo período de estudos, os teólogos concluíram que os Cinco Pontos do Arminianismo são contrários ao ensino da Bíblia.

Os teólogos formularam os Cânones de Dort, dispostos em cinco capítulos, cujos títulos ficaram conhecidos como Os Cinco Pontos do Calvinismo (TULIP):

Total depravity – Total depravação do homem
Unconditional election – Eleição incondicional
Limited atonement – Expiação limitada
Irresistible grace – Graça irresistível
Perseverance of the Saints – Perseverança dos santos


“... o fato de que alguns que são chamados pelo evangelho obedecerem ao chamado e serem convertidos não deve ser atribuído ao exercício próprio do livre-arbítrio segundo o qual alguém se distingue acima de outros igualmente supridos com a graça suficiente para a fé e conversão (como a orgulhosa heresia de Pelágio mantém), mas deve ser totalmente atribuído a Deus que, assim como escolheu os seus próprios desde a eternidade em Cristo, chama-os eficazmente no tempo apropriado, confere-lhes a fé e o arrependimento, resgata-os do poder da escuridão e transporta-os para o reino do seu próprio Filho; para que possam proclamar os louvores daquele que os fez sair da escuridão para a sua luz maravilhosa e possam gloriar-se não em si mesmos mas no Senhor, de acordo com o testemunho dos apóstolos em vários lugares.”[8]


5. ELEIÇÃO INCONDICIONAL x PRESCIÊNCIA

Os arminianos defendem o conceito de presciência, que pode ser definido da seguinte forma:

“Em poucas palavras, essa visão ensina que, desde toda a eternidade, Deus sabia como iríamos viver. Ele sabia antecipadamente se iríamos receber Cristo ou rejeitar Cristo. Ele conhecia nossas livres escolhas antes que as tivéssemos feito. A escolha que Deus fez de nosso destino eterno, então, foi feita baseada no que ele sabia que nós escolheríamos. Ele nos escolhe porque sabe, de antemão, que nós o escolheremos. Os eleitos, então, são aqueles que Deus sabe que escolherão Cristo livremente.”[9]


Os defensores desse conceito argumentam que ele é correto porque preserva tanto o decreto de Deus como a responsabilidade do homem. Deus não é arbitrário ou injusto e o homem não é uma marionete.

Talvez o principal texto utilizado pelos arminianos para defender a presciência seja Rm 8:29-30.

Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conforme à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. Rm 8:29-30


Para os arminianos, este texto prova que Deus escolhe os eleitos com base no conhecimento prévio (presciência) de quem escolheria Deus. Porém, tal ensinamento não é correto.

O texto de Rm. 8:29-30 não fala que Deus escolhe pessoas com base nas escolhas que essas pessoas fariam no futuro, mas fala que Deus escolhe pessoas que ele conhece de antemão. É óbvio que Deus escolhe pessoas que conhece de antemão. Deus é onisciente, e, portanto, conhece tudo que pode ser conhecido, tanto do passado como do presente e do futuro – Deus conhece tudo de todas as suas criaturas.

A presciência do texto não se refere às atitudes das pessoas, mas sim ao conhecimento exaustivo que Deus tem de tudo e de todos.

5.1. O HOMEM CAÍDO: VONTADE LIVRE OU ESCRAVIDÃO?

Apesar de o texto de Rm 8:29-30 não dizer isso, vamos admitir que a presciência seja o conhecimento que Deus tem daqueles que O aceitariam, a fim de tentar compreender as consequências desta afirmação. Como essa ideia se harmoniza com o restante das Sagradas Escrituras?

Já vimos que o pecado trouxe sérias consequências ao homem: a própria queda, a perda da liberdade, a obstrução do conhecimento, a perda da graça de Deus, a perda do paraíso, a presença da concupiscência, a morte física e a culpa hereditária (o pecado original). A Bíblia é clara ao afirmar a podridão do homem após a queda:

Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; que o conhecerá? Jr 17:9

A alma que pecar, essa morrerá (...). Ez 18:20

Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nenhum sequer. Rm 3:10-18

Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Rm 5:12

porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. Rm 6:23


Em resumo, o pecado trouxe ao homem os seguintes castigos: morte espiritual, sofrimentos da vida, morte física e morte eterna. O apóstolo Paulo é claro ao afirmar que a salvação foi dada por Deus a pessoas que não buscavam e nem pensavam a respeito disso.

E Isaías a mais se atreve e diz: Fui achado pelos que não me procuravam, revelei-me aos que não perguntavam por mim. Rm 10:20

Fui buscado pelos que não perguntavam por mim; fui achado por aqueles que não me buscavam; a um povo que não se chamava do meu nome, eu disse: Eis-me aqui, eis-me aqui. Is 65:1


Esses textos demonstram que o homem caído não pensa sobre Deus, ao contrário, ele foge do Seu Criador como Adão fugiu de Deus logo após ter pecado. Se Deus fosse salvar aqueles que o escolheriam, ninguém seria salvo, pois nenhum homem caído escolhe a Deus, todos escolhem fugir de Deus.

Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do jardim. Gn 3:8

5.2. A ESCOLHA DE JACÓ E A REJEIÇÃO DE ESAÚ

A Palavra de Deus é clara ao afirmar que a eleição decorre unicamente da vontade de Deus, conforme Rm 9:9-13:

“Porque a palavra da promessa é esta: Por esse tempo virei, e Sara terá um filho. E não ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um só, Isaque, nosso pai. E não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú. Rm 9:9-13


O texto utiliza o exemplo dos filhos de Isaque, o filho da promessa, para demonstrar que Deus escolhe seus eleitos unicamente de acordo com sua livre vontade soberana.

1- Esaú e Jacó eram gêmeos, isto é, tão próximos de uma semelhança natural quanto possível;
2- O propósito de Deus reverteu até mesmo a distinção natural que existia entre eles, já que Esaú (o mais velho) teve que servir a seu irmão mais novo;
3- Esse propósito divino foi estabelecido antes do nascimento deles (e, portanto, independentemente de suas ações). A eleição não está baseada em ações, feitos ou fé antevistos. Ao contrário, ela se baseia na graça soberana e predestinadora de Deus.
Extraído e adaptado da Bíblia de Estudo de Genebra, comentários ao texto de Rm 9:11-13

5.3. INJUSTIÇA DA PARTE DE DEUS?

O próprio apóstolo Paulo faz uma pergunta retórica para afastar qualquer dúvida a respeito da eleição unicamente pela livre vontade de Deus.

Que diremos pois? Há injustiça da parte de Deus? Rm 9:14a

Ora, é evidente que ninguém acusaria Deus de injustiça de acordo com as doutrinas arminianas e semipelagianas. Se Deus escolhe aqueles que o escolheram e rejeita os que o rejeitaram, não há injustiça nenhuma nisso. A objeção de injustiça de Deus somente pode ser atribuída àqueles que creem que Deus escolhe os eleitos apenas por sua vontade soberana. Deus é injusto por escolher alguns e não escolher todos.

Porém, o apóstolo Paulo é firme ao afirmar que Deus não é injusto, pois concede misericórdia e justiça conforme sua vontade soberana.

De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão. Assim, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Rm 9:14b-16


Deus seria injusto se não concedesse ao homem algo de direito, algo merecido. Mas o homem pecou e, por isso, passou a merecer de Deus a morte (física, espiritual e eterna). Deus seria perfeitamente justo se deixasse toda a humanidade perecer no inferno, como castigo pelo pecado.

Misericórdia não é justiça, mas também não é injustiça.

- Justiça: dar a alguém o que ele merece
- Não-justiça:
Misericórdia: dar a alguém o que ele não merece
Injustiça: não dar a alguém o que ele merece


“Existe justiça e existe não-justiça. Não-justiça inclui tudo fora da categoria da justiça. Na categoria de não-justiça encotramos dois subconceitos, injustiça e misericórdia. Misericórdia é uma boa forma de não-justiça, enquanto injustiça é uma forma má de não-justiça. No plano da salvação, Deus não faz nada mau. Ele nunca comete uma injustiça. Algumas pessoas recebem justiça, que é o que elas merecem, enquanto outras pessoas recebem misericórdia. Novamente, o fato de alguém receber misericórdia não requer que outros a recebam também. Deus reserva-se o direito da clemência executiva.[10]


6. LIVRE-ARBÍTRIO: DEFINIÇÃO

Pode-se definir livre-arbítrio como a capacidade de fazer escolhas sem nenhum preconceito, inclinação ou disposição anteriores. É a capacidade de fazer escolhas livres e partindo de uma postura totalmente neutra, sem nenhuma influência.

Antes de procurar respostas no campo espiritual, é necessário verificar se esse conceito se sustenta frente a questionamentos de ordem moral e racional.

“Certamente que abomino contendas de palavras com as quais a Igreja em vão se afadiga, porém julgo ser religiosamente preciso evitar estas palavras que soam algo absurdo, principalmente quando induzem perniciosamente ao erro. Indago, porém, quão poucos são os que, ao ouvir atribuir-se livre-arbítrio ao homem, imediatamente não o concebam ser senhor tanto de sua mente quanto da vontade, tanto que possa de si mesmo vergar-se para uma e outra dessas duas partes?
Contudo, alguém dirá que é preciso afastar perigo dessa natureza, se cuidadosamente o povo em geral for informado quanto ao exato sentido desta expressão. Na realidade, porém, como o coração humano propende espontaneamente para a falsidade, de uma palavrinha só o erro sorverá mais depressa do que faz extenso discurso em prol da verdade. Nesta própria expressão temos desta fato mais indisputável experiência do que seria de se almejar. Ora, enquanto se apega à etimologia do termo, deixada de lado aquela interpretação dos escritores antigos, quase toda a posteridade tem sido arrastada à ruinosa confiança pessoal.”[11]


Se uma escolha é feita sem qualquer motivação anterior, então ela é feita sem nenhuma razão, e, portanto, não pode ser julgada como boa ou má (não tem significado moral).

Escolha neutra (sem motivação anterior) -> Ausência de razão -> Ausência de significado moral

“Se uma escolha apenas acontece – apenas surge, sem nenhuma rima ou razão – então não pode ser julgada boa ou má. Quando Deus avalia nossas escolhas, ele está interessado em nosso motivos.”[12]

“O segundo problema que essa visão popular enfrenta não é tanto moral como é racional. Se não há nenhuma inclinação ou desejo anteriores, nenhuma motivação anterior, ou razão para uma escolha, como pode uma escolha ser feita? Se a vontade é totalmente neutra, por que iria escolher a direita ou a esquerda? É algo como o problema encontrado por Alice no país das maravilhas, quando chegou a uma bifurcação na estrada. Ela não sabia para que lado ir. Ela viu o radioso gato Cheshire na árvore. Perguntou ao gato: “Para que lado devo seguir?” O gato replicou: “Para onde você está indo?” Alice respondeu: “Não sei” “Então”, disse o gato Cheshire, “isso não importa.”
(...)
“Outra famosa ilustração do mesmo problema é encontrada na história da mula que tinha desejo neutro. A mula não tinha desejos anteriores, ou desejos iguais em duas direções. Seu proprietário pôs uma cesta de aveia à sua esquerda e uma cesta de trigo à sua direita. Se a mula não tivesse nenhum desejo, tanto pela aveia como pelo trigo, ela não escolheria nenhum e passaria fome. Se ela tivesse uma disposição exatamente igual para a aveia como tinha para o trigo, ainda assim iria passar fome. Sua disposição igual a deixaria paralisada. Não haveria motivo. Sem motivo, não haveria escolha. Sem escolha, não haveria comida. Sem comida, logo não haveria mula.
Precisamos rejeitar a teoria da vontade neutra não somente porque é irracional, mas porque é radicalmente antibíblica.”[13]


6.1. A VONTADE HUMANA É LIVRE OU MOTIVADA?

Já é pacífico na ciência contemporânea que o comportamento humano é motivado por necessidades e desejos, sendo que o homem age para satisfazê-los.

Tal entendimento foi amplamente estudado e explicado por vários estudiosos, dentre os quais destacou-se Abraham Maslow[14], psicólogo americano que desenvolveu a pirâmide das necessidades.

“Abraham Maslow sugeriu que muito do comportamento do ser humano pode ser explicado pelas suas necessidades e pelos seus desejos. Quando uma necessidade, em particular se torna ativa, ela pode ser considerada um estímulo à ação e uma impulsionadora das atividades do indivíduo. Essa necessidade determina o que passa a ser importante para o indivíduo e molda o seu comportamento como tal. Na teoria de Maslow, portanto, as necessidades se constituem em fontes de motivação.
O comportamento motivado pode ser encarado como uma ação que o indivíduo se obriga a tomar para aliviar a tensão (agradável ou desagradável) gerada pela presença da necessidade ou desejo. A ação é intencionalmente voltada para um objeto ou objetivo que aliviará a tensão interior.”[15]

A teoria de Maslow demonstra que a vontade humana é sempre motivada para atender suas necessidades ou desejos.

“Nossas escolhas são determinadas por nossos desejos. Elas continuam sendo nossas escolhas porque são motivadas por nosso desejos. Isso é o que chamamos de autodeterminação, que é a essência da liberdade.”[16]

“Pense um pouco sobre suas escolhas. Como e por que elas são feitas? Nesse exato momento você está lendo as páginas deste livro. Por que? Você pegou este livro porque você tinha um interesse no assunto da predestinação, um desejo de aprender mais sobre esse complexo assunto? Talvez. Talvez este livro tenha sido dado a você para ler como uma tarefa. Talvez você esteja pensando: “Não tenho nenhum desejo de ler isso. Tenho de lê-lo, e estou me esforçando com dificuldade com isso para cumprir o desejo de outra pessoa de que eu o lesse. Todas as coisas sendo iguais, eu nunca escolheria ler esse livro.
Mas todas as coisas não são iguais, certo? Se você está lendo este livro por causa de algum tipo de dever, ou para atender a uma necessidade, você ainda teve de tomar uma decisão a respeito de atender a uma necessidade ou não atender a requisição. Você obviamente decidiu que era melhor ou mais desejável ler este livro do que deixá-lo de ler. Até aí tenho certeza, ou você não o estaria lendo bem agora.”[17]


Como visto, antes de ser analisado biblicamente, o conceito de livre-arbítrio enfrenta insuperáveis problemas de ordem moral e racional.

6.2. CAPACIDADE NATURAL E CAPACIDADE MORAL

Para entendermos corretamente o conceito bíblico do livre-arbítrio, é necessário distinguir a capacidade natural e a capacidade moral do homem.

Capacidade natural é a capacidade de agir conforme as atribuições que cada ser humano possui, como pensar, andar, ver, ouvir, falar etc. Exemplo: uma pessoa cega não possui a capacidade natural de ver, ao contrário de outras que não possuem essa limitação.

Capacidade moral é a capacidade do homem fazer escolhas boas, que agradem a Deus. É aqui que reside o problema, pois a Bíblia nos ensina que o pecado destruiu completamente a capacidade moral do homem.

Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração. Gn 6.5

“Uma pessoa cujo coração só pode inclinar-se para o mal, certamente não procura nem pode procurar Deus.”[18]

“Esta é uma das mais fortes e mais claras declarações acerca da natureza pecaminosa do homem. O pecado começa no pensamento. O povo do tempo de Noé era excessivamente iníquo, de dentro para fora.”[19]

Como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nenhum sequer. Rm 3.10-12

Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outrora, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os demais. Ef 2.1-3

6.3. A VISÃO DE JESUS SOBRE A CAPACIDADE MORAL DO HOMEM

O que nosso Senhor Jesus Cristo tem a nos ensinar sobre este assunto?

A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez? Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te admites de eu te dizer: importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo que é nascido do Espírito. Jo 3.3-8


Neste texto Jesus ensinou que o homem nasce espiritualmente cego e completamente excluído do reino de Deus, como consequência do pecado.

Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. (...) E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido. Jo 6.44,65

“Em termos nada imprecisos, Cristo declarou a escravidão da vontade humana não regenerada. Anunciou que ninguém pode vir a ele – significando que ninguém pode crer nele – independentemente da obra soberana de Deus. À vontade humana, em si, falta a capacidade de escolher Cristo ou de decidir-se por ele. Quando Jesus disse, “Ninguém pode vir a mim”, empregou intencionalmente o verbo ativo poder (ter pode para; conseguir) em contraste com o verbo auxiliar poder (talvez possa). [No inglês o contraste é entre can and may]. Essa importante distinção indica a diferença entre a capacidade do homem para crer e sua permissão para vir a Cristo.
Nesses versículos Jesus está dizendo que nenhuma pessoa não regenerada tem capacidade inerente de crer nele. Ele pode vir a Cristo – tem permissão para fazê-lo. Mas não pode fazê-lo – falta-lhe a necessária capacidade. Pondo em destaque em termos precisos essa verdade, Pink escreve: “Estas palavras de Cristo põem às claras as profundezas da depravação humana. Elas expõem abertamente a inveterada obstinação da vontade humana.”1 Leon Morris acrescenta: “As pessoas em geral gostam de sentir-se independentes. Acham que vêm ou que podem vir a Jesus firmados inteiramente em sua própria volição. Jesus nos garante que essa é uma total impossibilidade. Ninguém, absolutamente ninguém, pode vir a Cristo, a não ser que o Pai o atraia.”[20]

“Portanto, indubitável nos é deixada esta verdade, a qual não pode ser abalada por nenhuma máquina de guerra: a mente do homem, está tão inteiramente alienada da justiça de Deus, que nada que não seja ímpio, pervertido, imundo, impuro, infame conceba, deseje, busque fazer, tão completamente besuntado está o coração do veneno do pecado, que nada pode exalar senão o que é totalmente pútrido. Porque, se alguns ostentam, por vezes, a aparência de bom, contudo a mente sempre permanece envolta em hipocrisia e enganosa tortuosidade, a sensibilidade enlaçada de íntima perversidade.”[21]

“Concluímos que o homem decaído ainda é livre para escolher o que deseja, mas, porque seus sentimentos são maus, falta-lhe a capacidade moral de vir a Cristo. Enquanto ele permanecer na carne, não regenerado, nunca escolherá a Cristo. Ele não pode escolher Cristo precisamente porque não pode agir contra própria vontade. Ele não tem desejo por Cristo. Ele não pode escolher o que não deseja. Sua queda é grande. É tão grande que somente a graça efetiva de Deus operando em seu coração pode trazê-lo à fé.”[22]

“Na passagem de João 6.44, Jesus Cristo diz: "Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer." Isto não deixa qualquer espaço para o "livre-arbítrio". E o Senhor Jesus passou a explicar como alguém é trazido pelo Pai: "Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim" (v. 45). A vontade humana, por si mesma, é incapaz de fazer qualquer coisa para vir a Cristo em busca da salvação. A própria mensagem do evangelho é ouvida em vão, a menos que o próprio Pai fale ao coração e traga a pessoa a Cristo. Erasmo pretende suavizar o sentido claro desse texto ao comparar os homens a ovelhas, que atendem ao pastor quando este lhes estende o cajado. Argumenta que nos homens há alguma coisa que responde ao chamado do evangelho.
Porém isso não acontece, porque quando Deus exibe o dom de seu próprio Filho a homens ímpios, estes não reagem favoravelmente antes que Ele opere em seus corações. De fato, sem a operação interna do Pai, os homens inclinam-se mais a odiar e perseguir ao Filho, do que a segui-Lo. Entretanto, quando Pai mostra aos homens quão maravilhoso é seu Filho, àqueles a quem tem dado entendimento espiritual, eles são atraídos a cristo. Essas pessoas já são "ovelhas" e conhecem a voz do pastor!”[23]

“Confesso que não gostaria de possuir "livre-arbítrio" ainda que o mesmo me fosse concedido! Se a minha salvação fosse deixada ao meu encargo, eu não conseguiria enfrentar vitoriosamente todos os perigos, dificuldades e demônios contra os quais teria que lutar. Porém, mesmo que não houvesse inimigos a combater, eu jamais poderia ter a certeza do sucesso. Eu jamais poderia ter a certeza de haver agradado a Deus, ou se haveria ainda mais alguma coisa que precisaria fazer. Posso provar isso mediante a minha própria experiência de muitos anos. Porém, a minha salvação está nas mãos de Deus, não nas minhas. Ele será fiel à sua promessa de salvar-me, não com base no que eu faço, mas em conformidade com a sua grande misericórdia. Deus não mente, e não permitirá que o meu adversário, o diabo, me arranque das suas mãos. Por meio do "livre-arbítrio", niguém poderá ser salvo. Mas, por meio da "livre-graça", muitos serão salvos. E não somente por isso, mas também alegro-me por saber que, como um cristão, agrado a Deus, não por causa daquilo que faço, mas por causa de sua graça. Se trabalho muito pouco ou errado demais, Ele, graciosamente, me perdoará e me fará melhorar. Essa é a glória de todo cristão.”[24]


7. GRAÇA IRRESISTÍVEL: DEUS FORÇA AS PESSOAS A IREM PARA O CÉU?

“O mau entendimento do estudante a respeito da graça irresistível é generalizado. Uma vez ouvi o presidente de um seminário presbiteriano declarar: “Não sou um calvinista porque não creio que Deus traga algumas pessoas ao reino, esperneando e gritando contra suas vontades, e exclua outras do reino, que desesperadamente queriam estar lá.””[25]


Tal declaração demonstra completo desconhecimento a respeito da doutrina do pecado, da situação do homem caído, da obra de redenção de Deus e de sua aplicação no homem.

“O Calvinismo não ensina e nunca ensinou que Deus traz pessoas esperneando e gritando para o reino, ou exclui alguém que quisesse estar lá. Lembre-se que o ponto cardeal da doutrina reformada da predestinação está no ensino bíblico da morte espiritual do homem. O homem natural não quer Cristo. Ele só vai querer Cristo se Deus plantar um desejo por Cristo em seu coração. Uma vez que esse desejo está plantado, aqueles que vêm a Cristo não vêm esperneando e gritando contra a sua vontade. Eles vêm porque querem vir. Eles agora desejam Jesus. Eles correm para o Salvador. Toda a questão da graça irresistível é que o renascimento vivifica a pessoa para a vida espiritual de tal maneira que Jesus agora é visto em sua irresistível doçura. Jesus é irresistível para aqueles que foram feitos vivos para a coisas de Deus. Toda alma cujo coração bate com vida de Deus dentro de si anseia pelo Cristo vivo. Todos aqueles que o Pai der a Cristo, vêm a Cristo (Jo 6.37).”[26]


7.1. A GRAÇA DE DEUS NA OBRA DA REDENÇÃO

O termo “graça de Deus” pode ser definido de três formas que se complementam na obra da redenção:

a. A graça é um atributo de Deus

“a. Em primeiro lugar, a graça é um atributo de Deus, uma das perfeições divinas. É o livre, soberano e imerecido favor ou amor de Deus ao homem, no estado de pecado e culpa em que este se encontra, favor que se manifesta no perdão do pecado e no livramento da pena. A graça está relacionada com a misericórdia de Deus, em distinção da sua justiça. Esta é uma graça redentora no sentido mais fundamental da expressão. É a causa última do propósito eletivo de Deus, da justificação do pecador e da sua renovação espiritual; é a prolífica fonte de todas as bênçãos espirituais e eternas.”[27]


b. Designa a provisão que Deus fez em Cristo para a salvação do homem:

“b. Em segundo lugar, o termo “graça” é empregado como um designativo da provisão objetiva que Deus fez em Cristo para a salvação do homem. Cristo, como Mediador, é a encarnação viva da graça de Deus “E o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade”, Jo 1.14. Paulo tem em mente a manifestação de Cristo, quando diz: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens”, Tt 2.11. Mas o termo não é aplicado somente ao que Cristo é, mas também ao que Ele mereceu para os pecadores. Quando Paulo fala, repetidamente, nas saudações finais das suas epístolas, da “graça de nosso Senhor Jesus Cristo”, ele tem em mente a graça da qual Cristo é a causa meritória. Diz João: “...a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”, Jo 1.17. Cf. também Ef 2.7.”[28]


c. É empregada para designar o favor de Deus demonstrado na aplicação da obra da redenção pelo Espírito Santo:

“c. Em terceiro lugar, a palavra “graça” é empregada para designar o favor de Deus como é demonstrado na aplicação da obra da redenção pelo Espírito Santo. É aplicada ao perdão que recebemos na justificação, um perdão dado gratuitamente por Deus (...).”[29]


8. BIBLIOGRAFIA

BERKHOF, L. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª edição. Revisada. São Paulo: Cultura Cristã. 2012.

BREVE CATECISMO DE WESTMINSTER

CALVINO, J. As Institutas. Tradução por Waldir Carvalho Luz. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.


LAWSON, S.J., Fundamentos da Graça: 1.400 A.C. – 100 D.C.: longa linha de vultos piedosos: volume 1; tradução Odair Olivetti. São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 2012.

LUTERO, M. Nascido Escravo. Preparado por Cliffor Pond. Versão condensada e de fácil leitura do clássico "A Escravidão da Vontade" (Martinho Lutero), publicado inicialmente em 1525. São Paulo: Editora Fiel. 2 edição. 2007. e-Book gratuito divulgado pela Editora Fiel.

SPROUL, R.C. Eleitos de Deus; tradução de Gilberto Carvalho Cury. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

SPROUL, R. C. Sola Gratia; traduzido por Denise Pereira Ribeiro Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.




[1] BREVE CATECISMO DE WESTMINSTER, Pergunta 14
[2] BREVE CATECISMO DE WESTMINSTER, Pergunta 15
[3] BREVE CATECISMO DE WESTMINSTER, Pergunta 16
[4] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus; tradução de Gilberto Carvalho Cury. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 69.
[5] CALVINO, J. As Institutas. Tradução por Waldir Carvalho Luz. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 20.
[6] HARNACK, A. History of Dogma, parte 2, livro 2, trad. por James MilIar (1898: Nova York: Dover, 1961), p. 247 in SPROUL, R. C. Sola Gratia; traduzido por Denise Pereira Ribeiro Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 66. (grifos nossos)
[7] COSTA, H.M.P. da. Fundamentos da Teologia Reformada. São Paulo: Editora Mundo Cristão, p. 95, disponível em: http://books.google.com.br/books?id=_u6isxgndmoC&pg=PA94&lpg=PA94&dq=semipelagianismo+e+a+igreja+catolica&source=bl&ots=Q5xQppo2cP&sig=zIORJ5Rp4b_vIgWGZ7KqJMxukMQ&hl=pt-BR&sa=X&ei=v3VCVMOfBY-7ggTe54HIDQ&ved=0CEUQ6AEwBw#v=onepage&q=semipelagianismo%20e%20a%20igreja%20catolica&f=false. Acessado em 18 de outubro de 2014.
[8] The Canons of Dort, apêndice I in Crisis in the Reformed Churches, de De Jong (org.), p. 246-47, in SPROUL, R. C. Sola Gratia; Idem., p. 135.
[9] SPROUL, R.C. Sola Gratia, Idem., p. 97.
[10] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 29.
[11] CALVINO, J. Idem, p. 34-35.
[12] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 39.
[13] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 40.
[14] Abraham Maslow foi um psicólogo comportamental, membro da Human Relations School, em finais da década de 50. Abraham Maslow nasceu em Brooklyn, licenciou-se em Wisconsin e doutorou-se na Universidade de Columbia, onde também trabalhou no departamento de investigação. No Jardim Zoológico de Bronx, estudou o comportamento dos primatas e, entre 1945 e 1947, foi diretor-geral da Maslow Cooperage Corporation. Em 1951, lecionava Psicologia Social na Universidade de Brandeis. Maslow ficou conhecido pelo desenvolvimento da Teoria da Motivação Humana.
[16] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 41-42.
[17] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 42.
[18] James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, The Doctrines of Grace: Rediscovering the Evangelical Gospel (Wheaton, IL: Crossway Books, 2002), 70 in Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 A.C. – 100 D.C.: longa linha de vultos piedosos: volume 1; tradução Odair Olivetti. São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 2012. p. 83
[19] John MacArthur, The MacArthur Bible (Nashville, Londres, Vancouver, Melbourne: Word Bibles, 1997), 24 in Steven J. Lawson, Fundamentos da Graça: 1.400 A.C. – 100 D.C.: longa linha de vultos piedosos: volume 1; tradução Odair Olivetti. São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 2012. p. 83 
[20] LAWSON, S.J., Fundamentos da Graça: 1.400 A.C. – 100 D.C.: longa linha de vultos piedosos: volume 1; tradução Odair Olivetti. São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 2012. p. 389-390
[21] CALVINO, J. Idem., p. 104.
[22] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 56.
[23] LUTERO, M. Nascido Escravo. Preparado por Cliffor Pond. Versão condensada e de fácil leitura do clássico "A Escravidão da Vontade" (Martinho Lutero), publicado inicialmente em 1525. São Paulo: Editora Fiel. 2 edição. 2007. e-Book gratuito divulgado pela Editora Fiel. p. 37-38.
[24] LUTERO, M. Idem., p. 39-40.
[25] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 92.
[26] SPROUL, R.C. Eleitos de Deus, Idem., p. 92-93.
[27] BERKHOF, L. Teologia Sistemática; traduzido por Odayr Olivetti. 4ª edição. Revisada. São Paulo: Cultura Cristã. 2012. p. 394.
[28] BERKHOF, L. Idem.,  p. 395.
[29] Idem.